Vamos de crônica reflexiva para começar o ano?
Por sorte, eu a vejo com pouca frequência.
E você, querido leitor, logo vai entender porquê.
Ela se chama Elis, tem uma presença de “palco” absurda, treina pesado, sobretudo os exercícios para as pernas e glúteos – como a maioria das mulheres. Auto centrada, é também detentora de uma autoestima acima das nuvens, capaz de deixar Narciso no chinelo – aquele da Mitologia Grega apaixonado pela própria imagem.
Sempre que me vê – quando nossos dias e horários acidentalmente batem para meu azar – é carinhosa à primeira vista.
– Oi, nega. Tudo bem?
– Tudo. E você?
– Também estou bem. Fiquei sumida um pouco porque estava doente. Tive Covid-19, fiquei alguns dias internada, quase morri.
– Nossa, que pena! Não sabia. Mas que bom que melhorou.
Esta seria a deixa perfeita para cada uma de nós seguir com seu treino e ser feliz. Seria…
Lá se vai Elis contar todos os mínimos detalhes sobre a doença que quase a mandou desta para melhor (ou pior, vai saber).
Aquela pergunta sobre eu estar bem era só protocolo. Mera geografia como muito bem disse Julia Roberts no filme “Uma linda mulher”.
E mesmo se eu estivesse à beira de um colapso nervoso, ou sendo chantageada por agiotas terríveis ou passando fome há um mês, ela sequer saberia. Estava ocupada demais falando de si mesma.
E se você, caro leitor, pensa que estou sendo insensível à dor alheia, garanto que não é isso. Siga com a leitura!
Após mudar de aparelho de treino, eis que Elis ganha uma nova oportunidade. Mesmo que a pessoa não tenha perguntado absolutamente nada ou nem a conheça (nem de vista que seja), ela logo dá um jeito de “fazer amizade”.
– Posso revezar o aparelho com você?
– Claro.
– Nossa, você pega pesado.
– Valeu!
– Eu também pegava bastante peso, até mais que você, mas fiquei doente recentemente, tive Covid e minha vida virou do avesso!
O vírus já está quase abrindo um processo contra ela.
E como a pobre pessoa demonstrou simpatia (e deve ter se arrependido para todo o sempre), a deixa perfeita estava posta para Elis cantarolar de forma afinada a melodia do espelho que tanta amava.
Deixado este colega de treino de lado (ele ou ela feliz e contente por se livrar daquilo), uma nova vítima se aproximava.
Assim que cruzou com outra pessoa treinando e foi cumprimentada – às vezes por pura educação social – ela mais uma vez mudou sua feição, de fisiculturista super poderosa para alguém que convalesceu às portas da morte. E o peixe distraído mordia a isca mais uma vez.
Neste mesmo dia, pude vê-la contar essa história a pelo menos quatro pessoas diferentes, com riqueza de detalhes, entonação e elementos da mais alta dramaturgia brasileira. Glória Perez precisa fazer uma oficina com ela urgentemente.
Os ouvintes deixavam de treinar por alguns instantes, para dar ouvidos ao relato dramático de Elis: alguém que esteve às portas do Hades.
Mesmo quando eles mencionavam que estavam felizes por sua recuperação, ela não se dava por vencida (agia como os personagens do Pequeno Príncipe, reinando sozinhos em seus mundos solitários).
O que Elis queria mesmo era contar as mazelas do hospital, da doença, do atendimento médico, da recuperação que foi muito longa, dos quilos que perdeu, das medidas recuperadas, dos elogios que recebeu por sua força e dedicação e por aí vai.
E como a paixão por si era excessivamente destacada na Pequena Notável, ela encerrava o discurso se autoelogiando (o contrário seria impossível). Não podia ficar em desvantagem competitiva.
– Apesar de ter ficado dias sem vir à academia, olha como eu já estou bem malhada. Minha perna está bem maior que antes – e puxava o short em frente ao espelho, obrigando a pessoa a concordar – Todo mundo fala que estou ótima, mais bonita que antes. E estou mesmo!
Autoestima elevada é uma bênção!
Duas semanas depois, o destino nos colocou de novo no mesmo e dia e horário de treino. Acho que ele está de implicância comigo. Só pode!
– Oi, nega. Tudo bem?
– Tudo. E você?
– Também estou bem. Menina, você nem sabe o que aconteceu comigo na semana passada.
Não, não sei. Não quero saber. E tenho raiva de quem sabe!
Como eu não tinha nenhuma outra opção, a não ser ouvir e demonstrar genuíno interesse (SQN), novamente Elis sacou uma de suas canções de boteco e encheu meus ouvidos de mazelas e vitórias dignas de uma mulher bem-sucedida. Alguém realmente admirável.
Detalhe importante: ela nunca se deu ao trabalho de perguntar o meu nome. Acho que tanto eu quanto os outros somos apenas peças para organizar melhor o tabuleiro de maneira a deixar o jogo mais interessante para a jogada final.
Leia outras Crônicas de Ellen Costa:
– Pequenas tramoias
– Alguém que conheci
– A incansável e destemida anunciadora de tragédias
Certa vez eu estava treinado sozinha o meu fatídico agachamento livre, quando ela se aproximou e perguntou como eu estava e com o que trabalhava.
Ai, Jesus, por que ela quer saber?
Expliquei que era jornalista há 12 anos e, antes mesmo de pegar fôlego, sem nenhuma surpresa, ela virou o jogo a seu favor.
– Nossa, que legal. Eu também amo o que faço.
Eu não disse que amava nada…
Emendou na sequência que era advogada e adorava sua área de trabalho. Se destacava em tudo. Conta uma novidade!
E me apresentou uma monografia de 400 páginas sobre o quanto era uma profissional incrível. Por seu próprio (e único) ponto de vista.
E assim vamos seguindo, de treino em treino, dia em dia.
E se você, querido leitor, pensa que ir à academia é algo fácil para mim, quero dizer que nem sempre as coisas são o que parecem.
Gostou da Crônica? Deixe um comentário abaixo e compartilhe com amigos.