A história de quatro mortos

Written by: Contos Destaque

Meu avô materno, sujeito gaiato por natureza, contava a mesma história cem vezes e das mais variadas formas. Quanto mais riso despertasse em seus ouvintes, mais elementos narrativos acrescentava à trama para deixá-la interessante ao gosto do freguês.

E como irreverente inveterado que era, rir dos outros era sempre uma motivação ever.

Pois bem.

Aproveitando a casa cheia por ocasião da semana santa, logo se pôs a remoer as histórias do passado. Contava que uma de suas sobrinhas, de 12 anos, criança ainda de tudo, teve de ir à venda do povoado onde morava a mando de seu pai.

– Zefa, vai na quitanda do Zeca Pinha e traz fiado um quilo de açúcar e um quilo de café. E vai ligeiro, sem se empaiar com outras coisas. – ordenou de pronto.

A menina, que estava brincando com suas bonecas e não queria sair de casa por nada, logo resmungou e fechou a cara, mas como não tinha outra opção que não fosse obedecer, encarou o sol do meio dia para caminhar algumas léguas que a aguardavam pela frente.

Como tinha a cabeça avoada, se distraia facilmente com qualquer coisa. Bastasse uma mosca passar voando e ela logo deixava seus afazeres pela metade como se nunca nem tivesse começado.

Depois de andar quase uma hora debaixo de um lua fervente de quase 40 graus e sem água para se hidratar, já se sentia morta e afadigada. Assim que avistou a comunidade onde a quitanda estava localizada, a única do povoado, pensou que seu infortúnio estava prestes a acabar. Antes de cruzar a porteira, no entanto, viu dois colegas jogando bola.

Acenaram para ela, que rapidamente foi ao encontro deles e, apesar do cansaço excessivo, logo se recompôs para cair na brincadeira. E se divertiram muito.

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A tardinha logo chegou e ela deu-se conta das horas terem passado depressa demais, e que precisava voltar para casa correndo com a encomenda que o pai pediu, antes que anoitecesse.

Mas o que foi mesmo que papai pediu? – desesperou-se em pensamento

Correu desembestada para a venda tentando, sem sucesso, em sua memória juvenil e atrapalhada, trazer luz para aquela agonia.

– Tio Pinha, papai pediu um quilo de fumo e uma cabeça de alho fiado.

– Pra quê diabos teu pai quer fumo, menina? – o tio logo estranhou. – Vai abrir algum boteco por acaso?

– Sei, não, tio. Mas foi o que ele pediu. Disse que paga na próxima colheita com arroz e feijão. E mandou eu não demorar.

Mesmo achando estranho o pedido do cumpade, que nem ao menos fumava, embalou tudo e a menina colocou o fumo nos ombros e foi-se embora feliz e apressada.

Quando chegou em casa, contente por estar de volta e pensando em se banhar e finalmente descansar da longa viagem, seu pai logo a interpelou.

– Por que tu demorou tanto, Zefa? Já tava até preocupado com medo de escurecer.

– É longe, papai. E tio Pinha tava muito ocupado com o povo da vila. Mas tá aqui sua encomenda. Do jeito que pediu. – disse orgulhosa.

Quando o pai viu o que ela havia trazido, irou-se a ponto de quase tirar o cinto da calça para lhe bater.

– Quem foi que te pediu fumo, menina besta? Eu quero isso pra quê diabos?

– Mas não foi isso que me mandou buscar?

– Menina, tu tá abilolada do juízo, é? Quer levar uma coça aqui mesmo? Vai já devolver essa porcaria e traz meu açúcar e meu café que a água já ferveu e secou faz é tempo.

Zefa encheu os olhos de lágrimas e com a mesma cara amarrada que estava, saiu pisando fundo pela estrada de terra deixando seus pés marcados nela, querendo chutar os animais que viu pela frente mas não podia porque seu pai estava olhando da varanda da casa.

E assim, novamente voltou à venda, desta vez no final da tarde, carregando um peso grande nas costas e muita raiva do pai no coração, por ter se confundido com o que havia pedido.

 – Papai parece que é besta. Pede as coisas e depois esquece! – era o que pensava.

***

Homenagem a quatro mortos da família:

Meu avô (falecido em 2002)
O pai da Zefa (falecido em 2020)
Zeca Pinha, o dono da quitanda (falecido em 2005)
A menina Zefa (falecida em 2018)

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Tags:, , , , , , , Last modified: 4 de março de 2021

Ellen Costa é o pseudônimo de Jucelene Oliveira, jornalista e escritora. Apaixonada por ouvir e contar histórias. Autora dos livros "Baque: você tem coragem de descobrir a verdade?" e "Crônicas da vida real", ambos disponível em e-book na Amazon. Idealizadora do Arte de Escrever. Instagram @ellencostaescritora