A fama de cabra-macho

Written by: Contos Destaque

O povoado se chamava Canindé das Almas e esse nome não parecia de forma alguma aleatório às histórias que se ouviam por lá. Desde a década de 50, quando Mané Pereira ainda era criança, já se contavam narrativas amedrontadoras sobre almas penadas que pairavam pelo distante vilarejo.

Como qualquer piá, ele acreditava na lenda e se borrava de medo só de pensar na possibilidade de ter de sair de casa à noite, iluminado pela fraca chama da lamparina. E se alguma alma aparecesse no caminho?

Casado e pai de quatro filhas, agora Pereira era não apenas o provedor de uma grande família, mas também o único na casa que poderia fazer uso da espingarda, fosse para defender a honra das meninas, fosse para afastar ou caçar algum animal predador.

Como o lugar era distante da cidade, a maneira mais fácil de conseguir mantimentos para alimentar tantas bocas famintas, era por meio da caça e da pesca. Os poucos agricultores que lá viviam sofriam com a estiagem e quase nada colhiam de suas roças.

Contudo, a lenda da alma penada dizia que ela atacava caçadores que se embrenhavam sozinhos na mata. A cada ano novos casos eram relatados: alguns contavam ter ouvido a voz que o tal espírito entoava quando resolvia aparecer para assombrar os poucos corajosos que ainda existiam por aquelas bandas.

Certa vez, durante um acalorado jogo de baralho, vários compadres gritavam e riam, até que o assunto da alma penada surgiu, entre uma pinga e outra. Mané Pereira logo tratou de debochar dos que não caçavam mais sozinhos.

– Cabra-macho que é macho não tem medo nem de onça pintada, o que dirá de coisa do outro mundo! – bradava.

– Ela já assustou várias por aqui. – diziam.

– Eu é que não sou doido de entrar na mata depois que escurecer – outro sentenciou.

Pereira balançava a cabeça em desacordo e deboche, repetindo seu jargão de macho do sertão.

– Vocês são é tudo froxo. Bando de baitolas!

– Se tu é tão macho assim, quero ver encarar a alma assombrada.

Como todos duvidaram, uma aposta foi lançada à mesa.

– Tem que ir sozinho quando escurecer! E vamo vê se tu volta são do juízo pra contar o fim da história!

Não tendo como escapar, ele passou a mão pelo bigode grosso que ostentava, bateu a mão na mesa:

– Pois se essa alma penada aparecer no meu caminho, minha espingarda vai trabalhar com gosto! Vocês tudo vão me pagar uma garrafa de pinga da boa!

***

Home, tu tá é loco? E se a alma aparecer mesmo? – a esposa caiu em desespero quando soube da aposta.

– Pois é de noite que se consegue pegar as onças gordas para um assado no jeito! – finalizou.

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***

No dia seguinte, após o sol se pôr, Pereira adentrou a mata com um único objetivo: voltar vivo para provar sua valentia e encher a cara de cachaça. Montou sua rede bem alta, presa nos galhos grossos da gameleira, escalou e deitou-se nela.

A noite caiu rápido e ele começou a ouvir o assovio do vento e o barulho das folhas secas balançado. Parecia que a mata sussurrava, mas ele não entendia o tema da prosa.

– É mais fácil aparecer uma onça pintada aqui! – resmungou ao pensar no quanto seria respeitado no povoado quando voltasse carregando um animal tão grande e pesado no lombo.

Acostumado a dormir cedo, caiu logo no sono. Acordou meio atordoado, sem ter certeza de que horas eram e se estava ouvindo ou sonhando com uma voz feminina e suave que entoava:

“No tempo que era viva, eu andava por aqui. Agora como estou morta vou pegar Mané Pereira no galho da gameleira!”

Esfregou os olhos assustado e ciente de que estava mesmo acordado. A tal voz se aproximava.

“No tempo que era viva, eu andava por aqui. Agora como estou morta vou pegar Mané Pereira no galho da gameleira!”

Desesperado, pigarreou. Tentou usar a lanterna que carregava, mas não via nada, apenas ouvia.

– Minha Nos… Sin…hora da caça, o que que tá acontecendo?

O barulho na mata se intensificou, como se passos apressados viessem em sua direção, e a voz – antes doce e suave – agora carregava pressa.

O medo da onça ficou pequeno comparado ao pavor que sentia agora da alma penada que queria levá-lo. Mané Pereira pulou da rede, bateu o joelho com força no chão, mas logo se recompôs. Pegando a espingarda e mirando na mata, efetuou alguns disparos. Houve um longo silencio.

– Te peguei, égua!

Em seguida, a voz gargalhou:

“Tiro só mata gente viva!”

O homem virou-se no sentido contrário à voz e como um atleta olímpico, picou o pé na carreira aterrorizado pela voz que parecia soprar diretamente em seu ouvido. Correu sem saber para onde. Seu único desejo era sair da mata o mais rapidamente possível.

Em meio ao seu desalento, Mané Pereira enganchou a calça surrada em um toco de árvore, sendo imediatamente alcançado por mais agonia. Embora puxasse com toda força, cada vez mais parecia manter-se preso ali, como se a alma penada estivesse puxando-o.

A voz se aproximava e ficava cada vez mais sinistra.

“No tempo que era viva, eu andava por aqui. Agora como estou morta vou pegar Mané Pereira no galho da gameleira!”

O cabra-macho não teve escolha: rasgou a calça com a peixeira que carregava na cintura e continuou correndo, praticamente nu, sem olhar para trás, cagado até as pernas, deixando um rastro de excremento pelo caminho.

Quando chegou em casa, com os olhos esbugalhados e fedendo horrores, obrigou a esposa a jurar de pé junto que nunca contaria aquilo a ninguém.

***

No dia seguinte, recomposto do susto e acalentado pela mulher, debochava dos compadres ao contar no boteco de pinga que não existia alma penada coisa nenhuma. Não conseguiu matar a onça, mas com certeza ela saiu ferida.

–Tô aqui pra contar que isso é besteira, como eu disse que ia ser! – gabava-se. – Não vi nenhum espírito do outro mundo lá, não!

***

As histórias de assombração continuaram sendo contadas por gerações naquele vilarejo, mas sempre que ocorriam, Mané Pereira era inevitavelmente citado de maneira quase solene. Apesar de seu esguio porte físico, era respeitado por sua valentia e fama de cabra-macho.

– Até hoje o único que entrou sozinho na mata, que não se arrupiou dos pés à cabeça, e que provou não ser froxo, foi o Mané Pereira. – era o que muitos diziam.

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Tags:, , , , , , , , Last modified: 6 de fevereiro de 2021

Ellen Costa é o pseudônimo de Jucelene Oliveira, jornalista e escritora. Apaixonada por ouvir e contar histórias. Autora dos livros "Baque: você tem coragem de descobrir a verdade?" e "Crônicas da vida real", ambos disponível em e-book na Amazon. Idealizadora do Arte de Escrever. Instagram @ellencostaescritora