18 anos de você

Written by: Coluna Destaque

Ela prometeu me presentear com um carro quando tivesse quinze anos. Não cumpriu. Aliás, até esqueceu de me pagar um simples cinema quando começou a trabalhar com telemarketing, no ano passado, e gastou seu rico dinheirinho com tudo – menos comigo.

Tudo bem. Eu relevo.

A gente mais promete que cumpre (ainda mais na idade dela).

Quando eu comecei a trabalhar, um pouco mais nova que ela, também só queria comprar minhas coisas (aquelas que meus pais não julgavam importantes) e comer tudo que tinha vontade. Gastar com comida é a glória para um adolescente.

E aos 8 ou 9 anos, quando ela disse que me daria um carro de presente, isso era apenas ingenuidade de uma criança que ainda não tinha noção das mazelas e desafios que a vida adulta nos impõe. E não são poucas.

Beatriz e Alice no meu carro.

Quando eu comprei o meu primeiro carro, lembro-me da expressão dela quando o viu na garagem de casa. Com aqueles olhos gigantes e arregalados dados por Deus, perguntou:

– É seu?

Eu respondi.

– Não, é nosso!

E foi nosso mesmo por mais de cinco anos, já que ela foi minha carona e companhia favorita em muitas viagens e jornadas vida afora. E é tão esperta e atenta com coisas relacionadas a veículos que me ensinou a mexer em várias funcionalidades dele. Acreditem ou não: ela poderia ser instrutora de autoescola aos 11 anos. E agora seria uma excelente mecânica de autos.

Quando a gente ama, simplesmente ama.

Viagem que fizemos juntas para o Piauí.

Outro dia entramos nas lojas Americanas no shopping Tamboré porque eu queria comprar copos e chocolate. Quando ela era pequena, a gente ia muito lá. E tirávamos fotos usando as perucas e máscaras vendidas. Ficávamos olhando os livros infantis e coloridos. E claro, comprávamos chocolate, salgadinhos, doritos e por aí vai.

Mas neste dia foi diferente.

Eu achei os copos em ótimo preço e resolvi também comprar “tupperware” de marca genérica (porque sou dessas) e assim nosso passeio aconteceu. Quando adentramos no corredor de toalhas, ela deu um grito assustador.

– Olha isso. O Omo está em promoção!

Sim, ela estava encantada porque o sabão em pó da marca Omo estava com um preço excelente. E ela adora lavar roupa. Começou a fazer isso por necessidade (quando se tornou uma exímia dona de casa depois que a mãe biológica mudou-se para outra casa). Mas fato é que agora ela gosta de cuidar das roupas, deixá-las limpas e cheirosas. E só usa amaciante caro e de marca boa. Pode isso?

Hoje, aos 18 anos, ela vê a vida de outra forma, claro. Há seus encantos, mas também suas dores.

Vive numa canseira que só pela misericórdia de Jesus. Muitas vezes habita um mundo e não deixa outras pessoas acessarem; passa o dia ouvindo músicas no Spotify; não tem paciência com a irmã e com as pessoas; só quer dormir para que chegue logo o dia seguinte. Tem ranço de receber visitas não convidadas, dispõe de opiniões firmes e quase definitivas e quer ser aceita de qualquer jeito. Em outras palavras, é uma adolescente 100% normal.

É também muito prestativa, alegre, esperta e malandra (no sentido de sacar fácil as coisas). Parece que já viveu umas três décadas.

Em alguns momentos a gente conversa e ri muito (de tudo) e ela sempre me chama de tonta por isso. Me zoa dos pés à cabeça (ainda bem que não tenho problema de autoestima). Outras vezes não quer diálogo de jeito nenhum: chega e sai de cara amarrada. Adolescentes!

Outro dia teve a pachorra de ameaçar me bloquear no WhatsApp se eu continuasse “pegando no pé dela”. Me chamou de chata. Que ultraje!

Eu sempre faço uso daquele discurso clássico e mais velho que andar para a frente, que também odiava ouvir da minha mãe quando tinha a idade dela: “Pego no seu pé porque quero o seu bem”. Blá blá blá!

Tudo isso é verdade e coerente, mas hemos de convir que ela só saberá disso daqui a bons anos… e espero que quando chegar nesta fase, lembre-se de mim com carinho.

Quando fico um fim de semana sem vê-la e ligo para dizer que estou com saudade, parece que estou ofendendo-a.

– Mas já? Bicha chata! Você me viu semana passada!

E quando mando um áudio de 40 segundos, ela diz que não vai ouvir porque não suporta podcasts!

Ô mundo cruel. Parece que é difícil entender que quem ama sente saudade!

Lembro-me de quando ela começou a dar os primeiros passos, a long time ago. Parecia que eu era a mãe de tão imersiva na experiência. Fiquei espantada, emocionada, coberta de euforia, como se isso fosse algo genial, inovador, como se nenhum outra criança no mundo tivesse passado por este processo. Talvez eu seja excessivamente boba, eu sei. Mas fato é que eu estava acompanhando as melhores fases da vida de uma criança que eu sentia ser minha e aquilo me acertava em cheio.

Minha menina em um dia de sol.

Certa vez a levei à pediatra para uma consulta e saí de lá parecendo ser – aos olhos da médica – a pior mãe do mundo. Complemente derrotada.

Minha Pampam tinha 4 ou 5 anos e ainda falava bem enrolado. A doutora perguntou:

 – Você gosta mais de bala ou de chiclete?

Ela respondeu encabulada:

– De chicrete!

E os olhos da médica me fuzilaram.

– Mãe, ela já devia estar falando chiclete corretamente. E não deve mais usar esta chupeta!

Depois das mil reprovações que a doutora fez, achei que não ia adiantar muito eu terceirizar a responsabilidade naquele momento, dizendo que não era a mãe. Calei-me com a bronca. Guardei meus 7×1 no bolso e seguimos em frente.

Acho que até hoje essa médica deve falar mal de mim para suas amigas da academia.

Eu sempre digo em casa, para as pessoas mais próximas, que “depois que ela nasceu, eu sou muito mais feliz”.

E minha irmã costuma rebater com sua delicadeza de sempre: “Se ficou mais feliz, não sei. Mas que você ficou bem mais besta, isso com certeza”.

Isso também é verdade! O amor faz isso com a gente!

Passeando na Paulista (antes da pandemia)

Quando houve aquele atentado numa escola estadual em Suzano (em março de 2019), aqui em São Paulo, eu disse a ela que faria por ela e sua irmã, o mesmo que muitos pais fizeram na ocasião. Durante as reportagens, os adolescente disseram que, quando perceberam os dois rapazes armados na escola, ligarem para seus pais dizendo o que estava acontecendo e pedindo socorro.

Parecia-me mais acertado que eles ligassem primeiramente para a polícia. Mas não. Isso só demonstra o quanto a figura do pai e da mãe, de fato representam, segurança e amparo para seus filhos. Muitos pais disseram que trabalhavam do outro lado da cidade e que se teletransportaram, desesperadamente, para o endereço da escola.

Eu disse a ela:

– Se você ou sua irmã me ligasse, eu pegaria o carro, cruzaria a cidade mais rápida que o Schumacher, chegaria à escola, pularia o muro de três metros, renderia os bandidos armados e salvaria você e ela. Sem pestanejar.

– Aqueles bandidos se meterem com a escola errada! – diria impávida aos jornais.

E ela, em deboche, respirou:

– Aham!  

Acho que ela entendeu o recado: entro numa casa em chamas, no mar profundo, pulo de um prédio alto, encaro bandidos armados até os dentes… mato e morro pelas minhas meninas. Só não enfrento ratos e baratas (mas quem não tem suas limitações?)

Isso inclusive me remete outra lembrança!

Certa vez um rato zombeteiro (filhote, mas tão cruel quanto os demais adultos), entrou pela janela no meu quarto. O que eu fiz? Corri para a sala, subi no sofá e fiquei gritando pelos bombeiros.

Ela estava em casa comigo. Apenas nós duas em casa e um rato querendo roubar a cena.

Logo depois começou a chover para agravar ainda mais a situação. E era preciso fechar a janela para não molhar os móveis próximos à parede. Eu continuava lá, sobre o sofá esperando a CIA ou o FBI vir prender o invasor. Nos filmes eles chegam tão rapidamente.

Mas quem precisa deles quando se tem uma criança super corajosa por perto?

Pois vendo o meu descompasso (e provavelmente não entendendo nada), ela foi até o quarto, empurrou uma cadeira e encostou-a na parede, subiu sobre ela e de forma devagar e com muito esforço, fechou a janela para conter a chuva. Sua idade, se muito, remontava cinco ou seis anos.

Após deixar o quarto seguro das águas do céu e constatar que o rato não estava mais no meu quarto, ela olhou na minha direção e me acalmou com chave de ouro:

– Calma! É só um rato!

Senhor amado, de onde veio isso?

Se eu pudesse eleger o top five dos dias mais felizes da minha vida, um deles foi na companhia dela.

E olha que este dia foi longo, calorento, cansativo e exigente.

Fomos ao zoológico de São Paulo. Eu a levei sozinha ao zoológico.

A mãe dela me disse “Tome cuidado com ela no trem” e nos deu um dia todo para desfrutarmos juntas. Eu fui ingênua, confesso. Não tinha a menor ideia do que seria carregar uma criança pequena, uma bolsa gigante e tanta responsabilidade numa única viagem.

Apesar de tudo, foi um dia emocionante. Daqueles que guardamos para todo o sempre.

Ela tinha apenas 3 anos de idade. Era curiosa, falante, perguntadeira, sensível e carinhosa. Entramos no vagão do trem na estação de Barueri e a cada parada que ele fazia, nas estações seguintes, até chegar à Barra Funda, ela me interpelava com o mesmo discurso.

– No zoológico tem jacaré?

– Sim, no zoológico tem jacaré.

– O jacaré é de verdade?

– Sim, ele é de verdade.

– O jacaré morde?

Eu respondia, ela aquietava-se, e dois minutos depois, ela retomava seu questionamento como se nada tivesse acontecido.

– No zoológico tem jacaré?

– Sim, no zoológico tem jacaré.

– O jacaré é de verdade?

– Sim, ele é de verdade.

– O jacaré morde?

As pessoas sentadas próximas achavam engraçado o jeito curioso dela. Sempre que a porta abria, ela queria descer.

– É aqui?

– Não, é na próxima.

E foram muitas próximas estações. Depois da Barra Funda, ainda encaramos o metrô até o Jabaquara e depois um ônibus todo pintado e colorido de bichos que nos levaria a nosso destino final.

Assim que adentramos pelo portão principal, paramos no espaço onde havia árvores e macacos brincando. Havia muitas crianças e pais ali, apreciando e mostrando para os pequenos a vida animal acontecendo. Ela, para minha surpresa, estava atenta a um pequeno macaquinho, sozinho, em um galho.

– Por que ele está sozinho? Cadê a mamãe dele? – indagou-me com aqueles olhos gigantes e emocionados que tem até hoje.

Eu disse que a mamãe dele logo viria pegá-lo, mas ela não se deu por vencida e ficou observando atentamente aquele filhote separado e sozinho. Seus olhos se encheram de lágrimas.

Ela chorou, eu chorei. Isso acontece até hoje: quando me conta alguma coisa e chora, a tonta aqui, chora junto. É sempre bom lubrificar os olhos.

Só saímos de lá quando a macaca mãe veio pegar seu filhote na árvore. Ufa!

Ela numa apresentação de violino.

O passeio seguiu.

Vimos a girafa, o elefante, a onça, as aves diversas e tantos animais e pessoas que circulavam com seus filhos pelo espaço aberto e cheio de verde a nos cercar. O lugar era gigante e com uma criança no colo (que não queria andar) e uma bolsa gigante, caminhei 50 estádios do Maracanã em três ou quatro horas.

Finalmente, nos deparamos com o lugar reservado aos jacarés. Ela finalmente se lembrou da abordagem inicial.

– O jacaré é de verdade?

Foi um dia glorioso!

Na volta para casa, ela dormiu assim que entramos no metrô, no final da tarde, depois de um dia exaustivo e ensolarado, passou a pesar 400 quilos nos meus braços. Ali eu me senti mesmo uma mãe de verdade. Quase não consegui carregá-la. A temperatura havia caído um pouco e coloquei o gorro em sua cabeça, mas quando saímos do trem, ele ficou para trás. Sou uma péssima mãe, eu sei.

Ela também sempre foi uma ótima companhia de tela grande e escura. Vimos muitas histórias emocionantes juntas, de desenhos a filmes reflexivos e dramáticos. Aliás devo dizer que “Monstros S/A” e “O pequeno príncipe” nós assistimos a perder de vista.

Ela sempre chorava nas mais variadas cenas dos filmes (com aqueles olhos grandes e expressivos que eu tanto amo). Minha zoiudinha favorita. Perdi as contas de quantas bicicletas e motos eu teria comprado se não tivesse levado-a tantas vezes ao cinema.

Gastei muito dinheiro com brinquedos, com lanches do Mc Donalds, passeios, cinema, roupas e afins. Fiquei mais pobre, mas não me arrependo de nada. Ela foi, até aqui, o melhor presente que a vida me deu (ela e sua irmã).

E mais importante ainda que o dinheiro que, às vezes vai e às vezes volta, eu sempre gastei meu tempo com ela (com elas). Este não volta.

Num passado recente, nós ficamos uma tarde e início de noite no pronto socorro porque ela não estava bem do estômago. Aconteceu tanta coisa aquele dia. Até nos divertimos (no pronto socorro). E mais recentemente ainda ficamos das 11 da manhã às 15 horas também no PS porque ela estava com uma gripe chata e forte – detalhe que neste dia eu estava de folga do trabalho (presente de grego).

Direta e indiretamente, eu estou sempre com ela. E sempre estarei (mesmo que ela me expulse) e às vezes me troque pela Lilian.

Vivi e vivemos muitos momentos inesquecíveis juntas. Um presente e tanto para os meus dias nesta terra. E é tanto amor que carrego por esta criança grande (habitante do meu universo há 18 anos) que a tornei personagem do meu livro: a Beatriz de Baque dá outra conotação à história. Quem leu, sabe disso.

Eu não mereço, mas espero e oro para que Deus continue sendo generoso e misericordioso comigo, dando-me mais e mais dias e momentos na vida da minha Beatriz… acho que 80 anos ou mais da presença dela serão o suficiente. ^

Minha Pampam. Minha Beatriz. Minha menina. Feliz aniversário!

Te amo muitão!!!!

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Tags:, , , , , , , , , Last modified: 25 de novembro de 2021

Ellen Costa é o pseudônimo de Jucelene Oliveira, jornalista e escritora. Apaixonada por ouvir e contar histórias. Autora dos livros "Baque: você tem coragem de descobrir a verdade?" e "Crônicas da vida real", ambos disponível em e-book na Amazon. Idealizadora do Arte de Escrever. Instagram @ellencostaescritora