Resenha do filme “O poço”

Written by: Artigos Cinema Destaque

Colaboração para o texto: Juh Oliveira

Existem três tipos de pessoas: as de cima, as de baixo e as que caem!

Para quem está a fim de ver um filme para relaxar ou se distrair nesta quarentena, escolher “O poço” não é nem de longe uma boa pedida. Porque a proposta da película é justamente incomodar, perturbar, e isso em vários aspectos. Agora, se você busca uma revirada no estômago e uma paulada na cabeça, prepare a pipoca e arregale os olhos.

Exibido pela Netflix, o filme “O poço” (Ficção científica/Terror, 2019) conta a história de um lugar misterioso, uma espécie de prisão indescritível, um buraco profundo no qual dois reclusos vivem confinados em cada nível. Assim como eles, nós (espectadores), também não sabemos a quantidade de níveis que existem ali. E isso já deixa a narrativa suficientemente claustrofóbica por si só.

O Poço. Imagem: Mundo das Capas.

Dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia, “O poço” é um filme espanhol que acompanha o protagonista Goreng (Ivan Massagué) que, um dia acorda em uma espécie de prisão, cuja cela contém um buraco quadrado no meio em que é possível ver os níveis acima e abaixo do seu.

Junto dele está seu mais novo colega de cela e de vida (pelo menos por alguns meses) o misterioso e enigmático Trimagasi (Zorion Eguileor), um senhor de idade que está há seis meses confinado ali e lhe explica o funcionamento do local.

É um filme muito diferente do padrão blockbuster que estamos acostumados a ver. É uma narrativa cheia de simbolismo filosófico que nos obriga a pensar (preguiçosos podem NÃO gostar).

Goreng se depara com uma realidade nada convencional, vivendo numa nova rotina de vida na qual todos os dias sobe e desce uma plataforma com um banquete com as melhores iguarias e cada prisioneiro (ou participante) tem um tempo de apenas 2 minutos para se alimentar antes de descer para o próximo nível. E aqui, a cena é visceral (impossível almoçar depois de assistir). E o que isso poderia significar? Continuemos a assistir…

Durante todo o primeiro ato vemos o personagem central tentando entender o que se passa, tentando descobrir como a estrutura do poço funciona, o que nos conecta ainda mais a ele, já que temos o mesmo objetivo.

O roteiro utiliza essa prisão vertical para mostrar o comportamento egoísta de cada indivíduo dentro de uma óbvia divisão de classes. Lembrando que existe um tempo para maturação do que está acontecendo e surgem circunstâncias que, aos poucos, vão transformando ou encaminhando cada prisioneiro a um egoísmo latente que visa sua única e exclusiva sobrevivência.

Livro Dom Quixote de la Mancha. Imagem: Kobo

Na primeira cena já acompanhamos um diálogo entre Goreng – que entrou na prisão voluntariamente com o objetivo de se livrar do vício do fumo, conquistar um certificado homologado e concluir a leitura do clássico Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes (adorei a referência) – com Trimagasi, que vai elucidando tudo o que viria nas cenas seguintes; é dele a responsabilidade de explicar ao protagonista a dinâmica do lugar. E sua primeira fala é extremamente marcante para toda a narrativa:

Existem três tipos de pessoas: as de cima, as de baixo e as que caem. 

Essa fala é exatamente o que sintetiza a problemática apresentada ali e que permeia as atitudes dos reclusos que parecem ter um lema único “comer ou ser comido”.

Outra observação importante é que cada morador do poço pode levar algo para sua cela. O protogonista opta por um livro (e deixa Trimagasi extremanente surpreso com a escolha). Segundo ele, “ninguém nunca levou um livro para aquele lugar”. De igual maneira, o colega de Goreng carrega consigo um objeto digno de causar estranheza e medo em qualquer situação de confinamento e desespero: uma faca. E conforme a narrativa avança, vamos tendo acesso a outros objetos/consolos que cada prisioneiro escolheu ter ao seu lado. E cada um deles fala muito sobre a personalidade e motivações de cada um ali.

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Vemos o quanto Goreng resiste, mas aos poucos e diante de situações de estresses e desespero, vai entrando nesse sistema. O quanto lutou para não se deixar corromper, sendo resiliente o quanto pode, porém chegou em um ponto em que a fome também conseguiu ganhar a sua mente e ele se viu forçadamente entrando em um jogo extremamente perturbador.

É um filme totalmente crítico e perturbador: não dá para negar que a obra nos leva a uma realidade humanamente cruel. Uma frieza estampada na tela, um tapa na cara dos sistemas econômicos do mundo. Uma metáfora pesada sobre desigualdade social, mostrando no desenrolar de cada cena a incapacidade de ser empático e a evolução do individualismo enquanto sociedade. É forte, mas necessário.

Muito pertinente aos dias atuais, acredito que diante dessa pandemia que temos vivido, com tudo que está acontecendo ultimamente e de como tem nos abalado de forma social, econômica e psicologicamente falando, é uma história que se encaixa perfeitamente para no mínimo nos levar a uma reflexão do quanto precisamos ser melhores no contexto social. E olha que o filme é de 2019 (quase um prelúdio do que estava por vir em 2020).

O ambiente do filme já é desesperador. Uma estrutura vertical marcada pelo egoísmo e pela falta de empatia, solidariedade e preocupação com o outro.  Apenas eu importo. Apenas a comida importa, já que depende dela a sobrevivência de cada um.

Ao assistir é fácil perceber como as iguarias e pratos vão sendo distribuídos andar a andar e acabando rapidamente, ficando apenas sobras para os andares inferiores conforme a plataforma vai parando. É injusto como vemos que quem está em cima come melhor do que quem está embaixo. Há um claro favorecimento das camadas superiores. Realidade bem conhecida, não?

Cena de ‘O Poço’: alegoria aterrorizante da luta de classes (Foto: Netflix/Divulgação)

A mensagem me parece óbvia: se a comida fosse melhor distribuída, não haveria tanta fome no mundo e as pessoas poderiam comer de maneira digna como qualquer cidadão merece. As atitudes mostradas no filme são evidentes do nosso cotidiano, são muito próximas à nossa realidade, mas são coisas desse tipo que preferimos não ver e, por vezes, agimos com uma naturalidade que não deveria vir separada de um grande peso na consciência.

O cenário vai ficando cada vez mais horripilante e sufocante, a luta travada pelos reclusos para se alimentar demonstra do que somos capazes quando estamos numa situação que exija de nós escolhas e decisões que podem ou não nos favorecer.

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Agimos impulsivamente pensando no nosso próprio umbigo. Demonstrando um lado em nós antes adormecido ou inconscientemente “controlado”. E assim nos justificamos em cima das más circunstancias nas quais estamos envolvidas e até fazemos uso delas como apoio para minimizar a culpa nesse ato tão grotesco.

Este filme veio para questionar poder, desigualdade, solidariedade, conscientização, empatia, papéis na comunidade. É para estremecer as estruturas existentes. Cada um dos personagens tem a oportunidade de estar em cima e embaixo. E é absurdamente desesperador perceber que de forma drástica o sistema não muda. É um ciclo constante.

Uma realidade pela qual todos nós somos responsáveis. Uma luta pela sobrevivência. A mensagem não é somente sobre recursos escassos, e sim sobre o valor da vida humana. O medo também é uma característica muito forte no filme. Medo da fome. Medo da morte pela fome.

Uma provocação aos sistemas políticos e econômicos responsáveis por travar grandes guerras ideológicas no mundo até hoje: Comunismo x Capitalismo. Segundo exposto pelo filme nenhum dos dois sistemas, por si só, funciona sozinho (de maneira adequada). Há um esforço maior que requer um sacrifício de ambos os lados.

Achei também muito interessante as referências bíblicas apresentadas na história. Goreng questiona se o intrigante Trimagasi acredita em Deus; ele responde que “naquele mês, sim”, fazendo uma clara distinção de que sua “fé” é por estar em um nível superior naquele momento. Ou seja, sua fala remete à crença popular de que as pessoas atribuem suas vitórias a Deus, mas nunca suas derrotas. Ou de que se “Deus existe mesmo, não existiria o mal ou a desigualdade”.

Na vida você nasce rico, nasce pobre ou alcança uma dessas posições no decorrer da sua existência e no poço temos a oportunidade de a cada mês estarmos numa posição diferente. O importante é reavaliarmos nosso comportamento perante cada uma delas.

Embora o filme não traga um final tão satisfatório quanto eu esperava (porque não gosto de finais ambíguos), devo dizer que a experiência foi muito válida.

O final que a narrativa propôs dá margem a várias interpretações, abrindo possibilidades para outras vertentes a partir dos distintos pontos de vistas baseado no que se viu, se sentiu ou refletiu depois de quase duas horas de imersão sensorial.

À surpresa que os personagens são expostos representa, a mim, sinal de esperança. Uma espécie de luz no fim do túnel. Ainda assim, prefiro finais definidos. No entanto, não tiro a credibilidade da história.

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Tags:, , , , , , , , , Last modified: 2 de novembro de 2020

Paula Jones (Paula Cincurá) é turismóloga de formação e atualmente cursa pedagogia. Trabalha como professora de Educação Infantil em Itaberaba, na BA. Nos tempos livres gosta de ler, ouvir música e não dispensa um chocolate (acredita no poder terapêutico que ele tem contra o estresse). Instagram @paulasallescincura