Numa cidade antiga, em algum lugar de São Paulo. 1993. Cinco minutos atrás
Vendo as cores sumindo da face de Lucas enquanto seus olhos cansados tornam-se opacos, tenho a certeza de que somente duas coisas são inevitáveis na vida: a morte e a culpa. *
Cinquenta minutos antes, no mesmo lugar
Ergo a alça e então bato com ela na enorme porta de madeira. Trata-se de uma argola de ferro presa à boca de uma cabeça de leão, um ornamento comum nessas casas antigas de arquitetura colonial. Após alguns instantes bato novamente e, desta vez, alguém atende. Uma senhora chorosa surge pela fresta da porta entreaberta. Ela seca as lágrimas com um lenço encardido e me encara.
– Padre João, me apresento. Recebemos um telefonema na paróquia sobre o estado de saúde do senhor Lucas e sobre o pedido dele.
A senhora funga desanimada e então, virando-se para o interior da casa, anuncia.
– O padre chegou.
Imediatamente a porta se abre de forma apressada. Dona Maria, a mãe de Lucas, uma senhora já idosa, na casa dos sessenta anos surge aos prantos e se agarra à minha batina. Ela chora copiosamente.
– Meu menino está muito mal, padre. Nem parece aquele moleque sapeca que vivia correndo por aí com você e os garotos da rua de cima. – Ela se afasta e, segurando meus braços com ambas as mãos, me encara.
– O senhor mudou bastante. Cresceu. Virou um homem de Deus.
Ela não dá atenção aos meus dois companheiros, parados logo atrás de mim no primeiro degrau da escada que conduz à casa.
– Sinto muito que nosso reencontro seja num momento tão doloroso, dona Maria. Mas Deus tem um desígnio para todos nós.
– E isso não me consola nem um pouco. – Ela retruca. As lágrimas rolando em seu rosto vermelho. – Nenhuma mãe deveria ver o filho partir. Deus está levando minha alma. Meu corpo não vai suportar isso também. – Ela continua.
– É mesmo uma tragédia, mas lembre-se que Maria também teve de suportar a dor de perder seu filho Jesus, e ainda assim foi forte, pois sabia que Deus tem um plano maior e que não nos cabe saber de tudo, ainda. – Passo o braço em volta do ombro da pobre senhora e ela chora novamente. Mas ela é forte como um touro e, em instantes, se separa de mim.
– Ele insistiu que devia ser o senhor a ouvir sua confissão final, antes da partida. Está aguentando firme, apesar de toda a dor que sente. O padre Afonso veio três vezes aqui desde anteontem, mas Lucas recusou-se a recebê-lo, dizendo que vocês eram amigos desde a infância e que o senhor era a pessoa certa para ouvir suas últimas palavras. – Ela diz isso enquanto me conduz pela casa.
Atravessamos a sala de estar e a cozinha, cheias de pessoas vestidas de preto, algumas chorando, outras rezando. Todas com aparência cansada.
– Sinto muito pela demora. – Me desculpo. – Precisei solicitar um diácono para me substituir na paróquia e viajamos de madrugada para chegar aqui ainda cedo.
Suas mãos enrugadas seguram as minhas em uma súplica silenciosa. Sua dor é palpável. Ela solta minhas mãos, abre a porta e diz.
– Anjinho, o padre João chegou.
Pela porta entreaberta vejo Lucas deitado na cama. Seus olhos buscam meu rosto e uma expressão de alívio surge em seu semblante.
– Dona Maria, a senhora não pode ficar no quarto durante a confissão, mas assim que terminarmos eu a chamo, tudo bem?
– O senhor é o padre, se diz que é assim, então é assim. – Concorda, resignada.
Ela dá uma última olhada em Lucas e virando-se para mim, diz.
– Eu estava preocupada que ele não aguentasse até a sua chegada. Agora sei que ele está em boas mãos. – Ela diz isso e lágrimas rolam por sua face sofrida e cansada.
– Fique tranquila. Estou aqui agora e tudo ocorrerá como deve ser. Eu a chamo quando terminarmos, ok?
Ela concorda com um maneio de cabeça e se retira. Eu entro e fecho a porta. Meus companheiros me seguem, silenciosos. Lucas não dá atenção a eles. Já sabe como essas coisas funcionam. Eu vou até a cabeceira da cama.
– Você está com um caco Luque. Está igual àquela vez em que brincamos de descer o morro atrás da casa do seu Moacir de bicicleta e você capotou no meio da estrada e ficou todo sujo e ralado da queda.
Ele ri e tosse. Um fio de sangue surge no canto da boca. Depois do esforço, ele responde.
– Foi o Matheus quem caiu da bicicleta e se ralou todo. Eu me arranhei porque caí do pé de seriguela enquanto pulava o muro da quitanda para roubar os ovos de galinha e jogar em você na escola. Nem lembrava mais disso. Acho que já podemos acrescentar isso na minha lista de confissões.
Eu concordo com um maneio de cabeça. Ele continua com algum esforço.
– Sente-se padre, a confissão é um pouco longa. – Ele aponta a cadeira e eu a puxo para o lado da cama.
– Certo Lucas, você continua espirituoso como eu lembrava. Estou aqui para ouvi-lo. Quando estiver pronto, é só começar.
*
100 anos antes, na mesma cidade
A confusão em frente à igreja matriz provoca uma pequena aglomeração de pessoas. No centro, o padre, uma moça de dezesseis anos e o pai, um velho coronel. A garota é filha do seu terceiro casamento.
– Vossa filha estás com o diabo no corpo! – Brada o padre com o rosto vermelho.
– A culpa é sua! – Ela grita enfurecida apontando o dedo em direção ao padre que faz o sinal da cruz em resposta.
– O que acontece a esta menina? – O pai exasperado, de bengala em mão, exige saber.
– O diabo apossou-se do corpo dela. – Grita o padre. – É uma desavergonhada!
O burburinho cresce ao redor da cena.
– Não foi o diabo que me seduziu! Foi o padre! – Ela grita enquanto levanta a saia do vestido, causando um alvoroço entre os curiosos.
Alguém grita:
– Ela tá possuída!
Outro completa:
– O padre desonrou a filha do coronel! Isso é coisa do capeta! Valha-me Deus!
Isso causa um surto furioso no coronel, que parte para cima do padre, bengala em riste, espancando-o. Seus jagunços tomam parte na selvageria. O padre grita por socorro, mas a essa altura a moça “possuída” ri de forma histérica enquanto arranca as roupas e as pessoas assustadas se afastam. No chão, o padre já ensanguentado grita entre soluços:
– Eu lhe excomungo! Eu excomungo todos vocês, crias do coisa ruim! Excomungo esta cidade!
A moça grita:
– Apedrejem o padre herege! Ele me seduziu e roubou minha pureza!
– É mentira! – O pobre padre tenta retrucar entre choro e fúria.
Mas já é tarde. A chuva de pedras e paus cai sobre ele e, em poucos instantes, apenas um corpo em espasmos resta no chão. O padre morreu. Naquela noite uma tempestade furiosa caiu sobre a cidade e uma das torres da igreja desabou. Por duas vezes, desde então, tentou-se reconstruir a torre, mas as formigas fizeram-na ruir. O povo, claro, não aceitou a explicação dos construtores e atribuiu o problema à maldição do padre apedrejado. A “garota possuída” veio a óbito poucos dias depois. Ninguém questionou muito, afinal, era uma desvirtuada pelo “coisa ruim”, mas houve suspeitas de que o pai havia exagerado na surra e uma costela quebrada causou uma hemorragia na pobre garota, que não resistiu. No final concluíram todos ser mais uma artimanha do capeta.
*
40 minutos antes, no quarto de Lucas
Lucas fica em silêncio por quase um minuto, com o olhar distante. O típico olhar de quem está visitando o passado.
– Padre, eu não tenho esperanças. Fiz uma coisa terrível no passado e isso me corroeu a alma. É por isso que esta doença se abateu sobre mim.
– Todos nós cometemos erros, Lucas, é o que nos torna humanos. Mas podemos repará-los se nos arrependermos de coração. Deus está sempre de braços abertos aos seus filhos.
– Espero que sim, padre.
Ele faz uma pausa e então retorna.
– O senhor lembra da história do padre apedrejado na escadaria da igreja?
– Sim, é uma história e tanto. A igreja ficou sem um padre por quase dois anos já que ninguém queria vir para o lugar onde apedrejam padres.
– Pois é. Essa paróquia é um lugar de má sorte. – Ele diz isso e tosse.
Outro filete de sangue surge em sua boca, evidenciando a necessidade de pressa em sua confissão, mas ele não parece mais tão apressado.
– Então padre, o senhor lembra-se dos três mosqueteiros?
– Athos, Porthos e Aramis? Ou você está se referindo aos seus amigos Pedro, Matheus e Paulo?
– Cof! Cof! – Ele tosse ao tentar sorrir. – Os menos famosos, padre. Os menos famosos.
– Sim, me lembro bem de vocês quatro na terceira série, me perseguindo na escola. Sempre procurando uma desculpa para me dar uma rasteira ou quebrar um ovo na minha cabeça. As crianças costumam fazer coisas bem maldosas às vezes. A gente tinha o quê, uns dez anos? Felizmente meus pais mudaram de cidade e nossas pequenas aventuras foram interrompidas. – Eu digo em tom de cumplicidade.
– Pois é. Mais um item da minha lista de pecados a confessar. Espero que o senhor me perdoe por isso.
– O perdão é uma dádiva de Deus. Se o seu arrependimento é genuíno e sua fé inabalável, então O Criador saberá ouvir as suas preces.
– Que bom. – Ele suspira e continua.
– Enfim, padre João, preciso lhe contar uma história de vinte e três anos atrás, para que o senhor entenda a extensão do meu pecado. – Ele tenta se sentar na cama.
– Sou todo ouvidos. Mas não se esforce demais. É melhor poupar suas energias.
– Está tudo bem, padre. Eu guardei um pouco para este momento. Antes de começar, preciso que o senhor saiba que não tinha a menor intenção de machucar alguém. Foi tudo um infeliz acidente.
*
Vinte e três anos atrás, no mesmo lugar de má sorte
Se tem uma coisa que é comum no Brasil são as cidades históricas. Pequenas ilhas perdidas no fluxo do tempo, que insistem em permanecer no século XIX, mesmo que sejam vizinhas de grandes e modernos centros urbanos.
Bem, esta é uma história sobre uma dessas cidades. Agora o que você precisa entender é que em cidades assim, não importa o que Einstein disse sobre a teoria da relatividade, ou que a NASA chegou à Lua e o Muro de Berlim foi ao chão. Tudo, absolutamente tudo o que acontece de diferente ou incomum é obra do divino… ou de sua contraparte maligna, o “coisa ruim”. Portanto, é desperdício de tempo aplicar a lógica ou a ciência aos fatos que ocorreram nesse lugar. Não tente. Você vai fracassar vergonhosamente.
Era uma quinta-feira, no começo da tarde. Quatro garotos corriam por entre as barracas da feira de frutas, verduras, peixes e carnes. Sim, naquele tempo – e estamos falando de menos de meio século atrás, no dourado ano de 1970 – era comum vender-se carnes frescas ao ar livre. Os pequenos fazendeiros abatiam a criação (porcos, cabras, galinhas etc) e vendiam no mesmo dia, na feira. Na verdade, ainda é possível comprar carne assim nos mercadões, nos grandes centros urbanos, mas já não é tão comum quanto naquele tempo.
Enfim, a feira era o maior evento daquela pequena cidade. Gabriel, Paulo, Matheus e Lucas, os quatro adolescentes sapecas, no auge dos seus quatorze a dezesseis anos, eram conhecidos por todos da cidade, afinal eram “o capeta encarnado”, como diziam os vizinhos. Aliás, cabe aqui um parêntese: crianças com nomes de apóstolos ou anjos são sempre encapetadas. É sério, pode reparar. Quem é o aluno mais danado da escola? O Joãozinho, claro! Ok, você tem razão, estou me desviando da história.
Os quatro garotos estavam em uma tarde particularmente proveitosa. Já haviam brincado de tirolesa pela manhã, quando amarraram uma grande corda que ia do topo do cruzeiro (aquela grande cruz que fica em um morro alto, nas cidades, e que pode ser visto de longe) até a cerca da Quinta do seu Teófilo e, sem o menor senso do perigo, ficaram descendo os quase cem metros que separava os dois pontos, pendurados a um cinto velho que Gabriel pegara em uma das gavetas de roupa do avô. Só pararam a brincadeira quando o cinto escorregou das mãos de Matheus, que despencou no meio do brejo, bem na altura da cerca.
Infelizmente para os fatos narrados a seguir, o endiabrado infante nada sofreu, exceto pelos joelhos e cotovelos ralados e por um gondó na testa. Após o almoço e uma bronca dos pais os quatro partiram para a feira. Pois bem, aquela época do ano havia muitos jalões na beira do rio. Os garotos gostavam de soprar os jalões e ver os esporos voando no ar. Logo tiveram uma excelente ideia. Pegaram vários jalões e correram em direção à feira. Uma vez lá, esperaram pacientemente até que um vento forte surgisse. Foi aí que sopraram, todos ao mesmo tempo, os jalões que carregavam. Viu-se os pequenos esporos dançarem no ar e em instantes gritos furiosos irromperam da feira.
Simão, o vendedor de carnes, bradava infâmias contra os “quatro cavaleiros do apocalipse” enquanto tentava, em vão, remover os esporos que grudavam nos pedaços de carne em sua barraca. Um dos filhos do vendedor saiu furioso com uma faca na mão perseguindo os garotos que fugiram como verdadeiros ninjas. Ninguém se feriu no final, mas o pobre Simão e seu filho tiveram que descartar parte da carne, pois a única forma de limpá-la seria com água e, uma vez lavada, a carne estraga se não for imediatamente preparada.
Como sempre faziam quando precisam escapar de uma coça, os quatro garotos correram para a igreja e, após um rápido sinal da cruz para a imagem do Cristo, subiram correndo os degraus que levavam à torre do sino. A única torre da igreja, visto que a outra havia desmoronado durante uma tempestade. Lá ficaram escondidos por quase duas horas, esperando o momento certo para voltar para casa. Foi de lá de cima que eles viram o filho do açougueiro indo embora furioso e cansado, depois de perdê-los de vista. Seria também naquele mesmo lugar de má sorte onde mais uma tragédia aconteceria em cinco dias, mas eles ainda não sabiam disso.
Os quatro fizeram questão de participar da missa, afinal, além de ser um lugar neutro, nenhum cristão poderia condená-los pela travessura da tarde se eles estivessem lá, de joelhos, “rezando e pedindo perdão”, certo? Tão logo a missa acabou e os pais se distraíram, eles trataram de sair de fininho para a praça do coreto. As nuvens pesadas anunciavam que uma chuva forte chegava, portanto, as famílias tomaram o rumo de casa e eles também. Mas não antes de cochicharem por um tempo.
Era cerca de onze e meia da noite quando se ouviu, em meio ao barulho da tempestade, o primeiro badalar do sino da igreja. Começou como um som fraco, mas em pouco tempo aumentou em volume e no descompasso. Durou uns poucos minutos, menos de cinco. Como a igreja estava vazia, visto que o padre dormia em uma casa na esquina da igreja, a curiosidade logo tomou conta da vizinhança. Como a chuva não passasse, ninguém pôde ir até a igreja verificar o motivo do barulho, mas uma moradora da praça da igreja jurou, na manhã seguinte, ter visto pela vidraça de sua casa um par de olhos avermelhados na torre da igreja. A princípio ninguém deu atenção a uma velha fofoqueira e meio cega, espiando por uma janela embaçada pela água.
Pela manhã o padre e um coroinha subiram até a torre do sino e nada encontraram. Mas naquela mesma noite, por volta das onze horas novamente ouviu-se o barulho do sino. Foi mais rápido que na noite anterior, porém mais intenso. Nesse dia também choveu, mas a vizinha fofoqueira estava a postos na “namoradeira” e gritou com horror ao ver novamente os olhos vermelhos surgindo na torre do sino.
Não foi preciso muito esforço para que as carolas da cidade evocassem as memórias do passado e concluíssem que se tratava do padre apedrejado que voltava do além-túmulo para se vingar da cidade que o condenou. Naquele dia as beatas se reuniram com seus terços para rezar e pedir proteção contra o fantasma vingativo. O padre, acompanhado do coroinha e de alguns moradores, subiu até a torre do sino novamente e nada encontrou.
Mas a torre velha não estava preparada para tantas pessoas subindo e descendo e um dos degraus da escada de madeira cedeu, derrubando um senhor de uns quarenta anos, que quebrou a perna. Não bastasse o acidente, o coroinha encontrou uma mancha no sino que parecia ser de sangue. A cidade entrou em desespero. Pela cidade só se falava do “sangue do condenado” e da tentativa de assassinato do pobre homem que quebrara a perna. Por mais que o padre tentasse conter os ânimos e dizer que o acidente do homem fora um simples problema de madeira velha e pobre, ninguém parecia lhe dar ouvidos. Ele mesmo não parecia muito convicto de que tudo era uma infeliz coincidência. Talvez o estigma do padre apedrejado o atormentasse, afinal, uma cidade que uma vez saiu de controle poderia muito bem voltar a rebelar-se contra as instituições sagradas.
Durante todo o dia os quatro garotos sapecas correram de um lado a outra da cidade, ajudando a espalhar ainda mais os boatos e aterrorizando as pessoas. Primeiro escondiam-se atrás das paredes e quando alguém passava pulavam na frente causando sustos seguidos por surtos de fúria e xingamentos. Quando se deram por satisfeitos com este estratagema, colocaram em prática os lençóis velhos. Vestidos como fantasmas surgiam ao longe, sempre em pares e, assim, que alguma beata os via tratava de fazer o sinal da cruz e clamar por proteção divina.
O padre, vendo que não podia conter os ânimos, e talvez temendo pela própria vida, convocou todos para a igreja e, naquela noite, realizou uma grande missa. A igreja lotou. Muitos ficaram de pé nos corredores, todos com terços e bíblias nas mãos, rezando fervorosamente por proteção divina. Naquela noite não choveu e o sino também não tocou. Foi uma noite tranquila e apesar da ansiedade, quando passou a meia noite e nenhum badalo foi ouvido, todos se recolheram às suas casas e dormiram o sono dos justos e abençoados.
Na manhã seguinte o marceneiro constatou que os degraus da escada estavam desgastados e precisavam de reparos, por isso o padre decidiu proibir que qualquer um subisse até a torre do sino. Não que houvesse corajosos dispostos a ir à torre assombrada. Por via das dúvidas, ele trancou a porta que dava acesso a torre. O dia transcorreu com relativa calma. Os cidadãos começaram a retomar suas rotinas. O padre, entretanto, achou prudente encontrar um motivo para se ausentar da cidade e, a pretexto de reportar o ocorrido à arquidiocese, solicitou um diácono para substituí-lo por dois dias. Ele partiu da cidade por volta das cinco da tarde daquele dia, logo após a chegada do diácono.
Mas em uma cidade supersticiosa não é fácil apagar o temor do coração das pessoas. Naquela noite, exatamente às onze horas, o badalo tocou novamente e com violência. O burburinho irrompeu dentro das casas, mas o temor foi tão grande que ninguém teve a coragem de sequer abrir as janelas, temendo que o demônio e seus fantasmas vingativos invadissem suas casas e os matassem. Como dizem, os filhos pagarão pelos pecados dos pais até a décima geração, certo?
O diácono, que mal havia chegado à cidade, viu-se no meio de um turbilhão de pavor. A cidade estava mesmo amaldiçoada. O padre apedrejado havia retornado para cumprir sua vingança. Era isso que se ouviu em todos os cantos da cidade. As crianças, ou estavam trancadas em casa com medo, ou correndo pelas ruas de paralelepípedo com lençóis sobre a cabeça, herança das traquinagens dos quatro encapetados. Eles, claro, se divertiam bastante com tudo aquilo. Pareciam ser os únicos na cidade que não estavam pensando em fugir.
O diácono tomou uma decisão. Convocou os fiéis e disse que resolveria o problema aquela noite mesmo. Acalmou a todos, lembrando-os que Deus é onipotente e que todos aqueles que nele cressem estariam protegidos de todo o mal. Mandou que todos voltassem para suas casas e que passassem a noite em vigília, rezando o terço.
A noite chegou e todos se recolheram em suas casas, mais por medo dos fantasmas do que por obediência ao diácono. Ele também se recolheu a sua casa, mas por volta das dez da noite, saiu, pé por pé, dos seus aposentos sem que ninguém o visse e retornou à igreja, entrando sorrateiro pela porta dos fundos.
Estava disposto a confrontar o diabo em pessoa se fosse preciso para acabar com o terror que assolava a pobre cidade. Uma pequena chuva havia começado a cair mansa na cidade, o que atiçou os temores da população, pois lembraram-se que no dia em que o padre excomungou a cidade também choveu e uma das torres da igreja despencou.
Exatamente às onze e quinze da noite o primeiro badalo foi ouvido. Candelabros e oratórios caíram em diversas casas, derrubando velhas nos carpetes quando o segundo badalo tocou. Um coro de “Ave Marias” e “Pai Nossos” começou a crescer na cidade. Na igreja, as pernas do diácono fraquejaram e ele caiu de joelhos por um momento, sua fé vacilando. Olhou então para a imagem de Cristo crucificado e uma coragem enorme se apossou dele. Ergueu-se e girou a chave na porta que dava acesso à torre do sino. Em uma mão levava uma vela, na outra uma bíblia.
Subiu com dificuldade os degraus e, logo ao entrar na sala do sino foi tomado pelo terror ao contemplar aqueles olhos vermelhos. Levou uma fração de segundos até ele entender o que acontecia. Duas enormes corujas revezavam-se na sala, atacando o badalo do sino, no qual estava pendurado um enorme pedaço de carne. Foi então que ele viu um vulto surgindo pela janela e compreendendo o que era, agarrou-o e puxou-o para dentro da sala.
Paulo caiu no chão assustado pelo puxão, pois não esperava encontrar ninguém na sala do sino. Ele estava lá apenas para retirar a corda que prendia a carne no badalo do sino tão logo as corujas terminassem de comer. Era aquela carne que ele e os amigos haviam estragado dias atrás na brincadeira dos jalões, e recuperado do cesto de lixo. Desse modo, ninguém encontraria sinais da traquinagem deles na manhã seguinte.
O diácono, agarrado ao cangote do moleque, tentava espantar as corujas balançando a bíblia, para que pudesse chegar às escadas arrastando o delinquente pego em flagrante. Nesse momento, ele sentiu um forte empurrão e foi arremessado sobre o sino, soltando Paulo. As corujas, sentindo-se ameaçadas, atacaram-no e, no seu desespero, ouviu-se um grito e um baque surdo quando seu corpo despencou pela janela frontal da torre, estatelando-se no chão em frente à igreja.
O grito gelou o coração de todos aqueles que o ouviram. Paulo e Lucas, horrorizados com a cena, arrancaram a corda do badalo e fugiram pelo telhado da igreja, descendo por uma escada improvisada que Pedro e Matheus haviam preparado para os cúmplices da traquinagem. As corujas alimentadas também sumiram.
Não demorou muito para que uma pequena multidão se formasse em frente ao corpo sem vida no chão da igreja. O pobre diácono foi velado em outra cidade. Ninguém queria vir para um lugar amaldiçoado. O padre pediu transferência e não retornou mais à paróquia. A diocese, para acalmar os ânimos, anunciou uma grande reforma na igreja e deixou o local fechado por vários meses. Todas as missas daquele ano foram realizadas em um clube da cidade.
Os quatro garotos apavorados fugiram para suas casas e não apareceram na cena da tragédia. Após o ocorrido o sino da igreja nunca mais tocou fora de hora. Paulo, Matheus e Pedro mudam-se da cidade tão logo completaram dezoito anos. Apenas Lucas, que nunca se casou, continuou morando com os pais.
*
Dez minutos atrás, no quarto de Lucas
Ele fica em silencio após o término da narrativa/confissão. Eu nada digo enquanto vejo seu olhar vagueando pelo quarto.
– Bem padre, como o senhor deve ter adivinhado, quem empurrou o diácono fui eu. Não era minha intenção machucá-lo. Eu só queria que ele soltasse o Paulo, assim a gente podia fugir sem levar bronca, afinal, ele era novo na cidade e não conhecia a gente. No máximo poderiam suspeitar, mas nunca provar que éramos nós.
Suas palavras quebram o silêncio. Ele tosse novamente.
– O diácono que foi morto pelo fantasma da torre. – Eu concluo.
– Sim. Como eu disse padre, esta é uma cidade de má sorte. De má sorte e cheia de superstições. Ninguém na cidade jamais imaginou que o diácono pudesse ter sido assassinado por um vivo, pois todos estavam apavorados com a ideia do fantasma. Como o rosto e o tórax do diácono estavam rasgados por garras, logo concluiu-se que fora obra do fantasma. As garras do diabo. Por isso não houve investigação e a diocese tratou de abafar o caso para não causar pânico em toda a região.
– Essa é uma história bastante complexa, Lucas.
– O senhor acha que Deus pode me perdoar por isso, padre? Desde o ocorrido passei a vida tentando ajudar as pessoas. Vou nos cultos, sirvo sopas aos pobres, faço doação de alimentos e roupas no inverno. Tenho sido um cristão exemplar. Mas ainda assim essa culpa me corrói. Não consegui ter um relacionamento duradouro, pois sinto que estou mentindo para as outras pessoas. Estou envenenado, padre.
– Lucas, a culpa pode nos destruir. Ainda mais uma desta magnitude. Somente Deus tem o poder de dar e tirar a vida. O que você fez é muito grave.
– Mas eu me arrependo todos os dias, padre. Será que Deus não vai me aceitar? Meu arrependimento é verdadeiro. Será que meu destino é o purgatório?
– Deus é amor e bondade Lucas. São os homens que sucumbem às tentações. Converse com ele, revele seu coração e entregue seu espírito a Ele.
– Cof! Cof! – Isso dói muito, padre! Meu corpo está no limite. Acho que meu tempo chegou.
– Tem uma coisa que eu não entendo em tudo isso, Lucas. Por que você guardou este segredo por tantos anos? Se seu arrependimento era sincero desde o começo, por que você esperou até o momento final para revelar esse segredo? Por que recusou o auxílio do padre Anselmo nos últimos dois dias e solicitou expressamente que fosse eu a ouvir sua confissão? – Interrompo seu momento de dor.
– Padre João, tinha que ser o senhor a ouvir a confissão. Talvez o senhor não saiba, mas está ligado a história trágica desta cidade. O diácono era….
– Meu tio avô. – Interrompo-o.
– Então o senhor…
– Por coincidência encontrei Pedro há alguns meses em um evento de caridade e ele me falou sobre um parente meu que havia morrido aqui na cidade. Um diácono. Não me contou como, claro.
– Eu demorei tanto para descobrir isso. Quer dizer, depois do que aconteceu eu comecei a buscar por parentes do diácono, eles tinham o direito de saber a verdade. Do crime que cometi. Eu queria poder pedir perdão por isso diretamente aos descendentes dele. Infelizmente a igreja guardou as informações a sete chaves e precisei gastar muito tempo e recursos para conseguir obter informações do caso. Contei a ele sobre isso, mas não sabia que ele havia encontrado o senhor.
– Foi um encontro casual.
– E como ele estava, padre? Espero que melhor do que eu. Aquilo consumiu a todos nós.
– Ele está bem melhor, Lucas. Está com o Senhor agora. Faleceu dois dias depois do nosso encontro enquanto dormia, pelo que eu soube.
– Meu Deus! – Ele suspira. – Bem, padre. Foi por isso que precisava ser o senhor a ouvir a confissão. O senhor é padre, assim como o que foi apedrejado e que levou a culpa pela morte do diácono, seu parente. O senhor é o elo que liga todas as histórias trágicas dessa cidade de má sorte. Cof! Cof!
Uma pelota de sangue jorra pela boca de Lucas. Seus olhos se arregalam e vejo o ar faltar em seus pulmões. A cor em seus olhos está sumindo. Ele estende a mão para mim e, em um último esforço seus olhos encontram os meus em uma súplica por perdão. Eu seguro suas mãos e me aproximo dele para proferir as palavras finais.
Em seguida, vou até a porta, abro-a e me dirijo até dona Maria, a mãe de Lucas.
– Tudo foi feito. A senhora deve ficar ao lado dele nesse momento.
Dou passagem para ela que entra apressada e vai se postar ao lado do filho em sua agonia final. Ele me olha pela última vez.
Meus companheiros e eu atravessamos os cômodos da casa antiga e chegamos até a rua. O dia está nublado e uma chuva fina começa a cair, anunciando que virá uma tempestade por aí. Preciso me apressar.
*
Agora
Na esquina, dentro do carro, observo um padre apressado correr com um guarda-chuva na mão, tentando em vão evitar a água que começa a cair com força. Ele segura a alça que pende da cabeça de leão e bate com força na porta. Pouco tempo depois a porta se abre e só posso imaginar o diálogo que se segue.
Virando-me para meus companheiros no banco de trás, digo:
– Dois já foram. Faltam dois para que vocês possam descansar.
Ambos sorriem felizes enquanto retiro a falsa batina e ligo o carro.
– Como eu disse, o perdão é uma dádiva de Deus. E eu não sou Deus. Vamos embora antes que alguém nos veja.
Manobro o carro pela rua estreita em direção à saída da cidade, mas já não há ninguém no carro comigo. Quando for preciso, eles voltarão.
FIM.
“Padre João” WILL RETURN!
*Texto escrito pelo colaborador Josenilson C. Oliveira.
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