Crônica: As aventuras românticas e (tardias) de Julimara

Written by: Crônicas

Ela estava na fila do supermercado, distraída conferindo as mensagens no celular enquanto esperava sua vez. De repente, foi interpelada por um homem que, parado de pé à sua frente, demonstrava satisfação em reencontrá-la.

– Olá, Julimara. Quanto tempo! – ele disse lhe oferecendo um largo e espontâneo sorriso. – Eu estava há quase meia hora olhando para você e pensando. “Será que ela vai lembrar de mim?”.

Bingo! Ela não se lembrava!

– Como você está? – ele seguiu com a conversa.

– Bem. – respondeu desconsertada e ele logo percebeu que ela não sabia quem ele era. Para ajudá-la na descoberta, começou a lhe oferecer pistas.

– Você estudou na escola Leonor, certo?

– Sim.

– Na sala da professora Nenê?

– Sim?

– Suas amigas eram a Cida e a Denise?

Ela novamente assentiu. Será que ele era um detetive?

– Então, eu sou o Chiclete. Não se lembra? – apresentou-se sem constrangimento. – Éramos da mesma classe. Até fizemos o trabalho de ciências juntos uma vez. Também íamos pela mesma rua estreita na hora da saída. – Estou um pouco diferente agora, mas sou eu. Chiclete. – ele parecia orgulhoso diante dela.

Mudou um pouco? – Julimara avaliou observando-o bem.

Em segundos ela teve um flashback intenso e detalhado.

Lembrou-se de que Chiclete (não o bonitão da novela das oito que tinha pinta de sobrinho do Lampião e namorava a Paola Oliveira) era o garoto mais bonito e cobiçado da turma da terceira série da escola Leonor.

Ela, por outro lado, era uma retirante nordestina recém-chegada da terrinha, magrelinha como a Olívia Palito do Popeye, envergonhada e discriminada por alguns colegas da cidade grande, não só por sua timidez que transparecia, mas principalmente pela marca da pobreza colada em sua testa.

Olivia Palito. Imagem: Internet.

Por conta disso, Chiclete (hoje tão simpático e extrovertido na fila do mercado) era um dos colegas que mais esnobava sua infeliz e malfadada existência, fazendo-a se sentir cada vez menor ao colocar-se superior a ela e suas amigas quando passava por elas na saída da escola.

Na classe, só falava com ela ou com qualquer outra menina pobre e desalinhada se esbarrasse por acidente. E mesmo assim, olhava de cima para baixo, impávido. Sobre o trabalho de ciências que mencionou foi um acontecimento isolado, mas ele não fez qualquer esforço para mostrar-se atencioso nas poucas horas em que tiverem de trabalhar juntos. Pelo contrário, ela sentia que ele e os colegas estavam sempre falando e rindo dela.

As colegas da sala e de outras séries estavam sempre perguntando pelo garoto branco, loiro e de olhos verdes que era um charme ambulante, responsável por atrair muitos olhares e suspiros femininos infantis e até pré-adolescentes.

Chiclete reinava aos oito anos de idade fazendo quase o mesmo sucesso que o Leonardo Dicaprio fez após protagonizar Titanic. Todas as “mulheres” do mundo o queriam e ele, claro, fazia sua seletiva maldosa e conveniente.

Como não se apaixonar? Imagem: Internet.

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Após notar que ela foi e voltou no passado, ele novamente seguiu com a prosa.

– Como você está? O que tem feito? – era como se fossem amigos de longa data. Fez várias perguntas em um pequeno espaço de tempo, até chegar a vez dela na compra dos frios e ao final, despediu-se graciosamente.

– Foi muito bom te ver, Julimara. Você está muito bem, muito bonita. – ainda gracejou.

Bingo outra vez!

Quem já assistiu o filme “De repente 30” com a maravilhosa Jennifer Garner vai entender bem como Julimara se sentiu ao reencontrar Chiclete, o garoto que ela também suspirava de amor e que fazia pouco caso de sua existência fatídica.

Lembram-se que a Jenna (Jennifer Garner) tinha 13 anos e era apaixonada por um garoto que não a enxergava e ainda fazia questão de esnobá-la? Pois a analogia é perfeita. Cliclete era apenas um garoto mimado e metido que se achava no direito de humilhar pessoas apenas para se sentir ainda mais amado e desejado. Era lindo apenas por fora .

Quase no final do filme, quando a Jenna pega um táxi, ela reencontra o garoto da infância. Julimara não reconheceu Chiclete justamente porque o tempo foi tão ingrato com ele (fisicamente falando) quanto foi com o personagem do filme. Do garoto de oito anos bonito sobrou apenas os olhos verdes que destoavam do restante da aparência.

Julimara saiu do mercado carregando seus pães e frios e pensando no quanto o destino pode ser engraçado às vezes. O que ela ainda não sabia é que surpresas mais incríveis ainda estavam por vir.

Ah, esses amores da infância. Imagem: Free Pik.

Dias depois, eis que Julimara é surpreendida novamente. Ao pedir comida por aplicativo não fazia a menor ideia de quem viria fazer a entrega. O destino estava realmente pregando peças na jovem professora.

Mais de quarenta minutos de espera (e olha que prometiam entrega rápida). Ela já estava subindo pelas paredes de fome na academia onde trabalhava, olhando para os minutos que passavam rápido. Logo teria de dar aula.

Ouve passos na escada (quase ao som da música do Ritchie) e eis que surge diante dela um entregador bastante familiar.

Calma, leitor. Não era o Chiclete. Era alguém ainda mais peculiar.

Julimara liberou a catraca, ansiosa por pagar logo e finalmente poder saborear sua deliciosa refeição, mas o homem uniformizado não queria apenas cumprir sua tarefa e ir embora como seria educado, profissional e conveniente; ele queria matar a saudade de uma velha paixão da adolescência.

Óh, céus!

– Quando eu li o nome da pessoa que fez o pedido, logo pensei “só pode ser ela”. Esse nome é muito incomum para haver outra pessoa. Apostei mentalmente que era você e olha só: estava certo.

Juliamara só conseguiu pensar na tragédia grega que sua mãe lhe colocou naquele momento. “Valeu, mãe, por esse nome tão incrível. Acabei de ganhar na loteria!”.

Ao contrário de Chiclete, este outro colega da escola ela não teve qualquer dificuldade para reconhecer. Era Januário, o garoto da escola, também seu vizinho de bairro por vários anos, que usava óculos fundo de garrafa (e por isso era zoado pelos colegas), era sôfrego nas notas das provas e parecia um stalker juvenil sempre que ela passava pela rua para ir ao mercado ou padaria. Ele estava sempre à espreita (só faltava usar um binóculos). O poste da rua já tinha até a marca do seu corpo encostado. Não dizia nada; sequer a cumprimentava, mas seguia todos os seus passos milimetricamente.

A entrega que deveria durar dois minutos no máximo se estendeu com uma conversa de quase meia hora. Era justamente o tempo que ela tinha para almoçar antes de encarar a maratona de aula com as crianças.

Resultado: não conseguiu comer seu yakissoba delicioso e passou a tarde toda dando aulas e sentindo seu estômago lhe dar socos por reclamar de fome.

Januário só cresceu para cima e para os lados. Também perdeu o cabelo e continuava usando os óculos fundo de garrafa. Seu semblante, no entanto, continuava o mesmo. Mas agora, já não era mais tímido, muito pelo contrário, falava como uma maritaca. A conversa demonstrou claramente que ele continuava o mesmo “songa monga” de anos atrás.

Em meio ao papo forçado, ele ainda teve a pachorra de confessar que deixou a entrega dela para o final da fila, justamente porque queria “matar a saudade” caso fosse mesmo ela a cliente que ele esperava encontrar.

Quanto profissionalismo! – ela pensou. Vou processar esse aplicativo de comida!

– Muito bom te encontrar. – ele seguia falando como se o destino tivesse separado os dois por pura vaidade.

Saudade do quê, cara pálida? Não éramos amigos! – foi o que pensou.

E ele falou, falou e falou. E ela ouviu, ouviu e ouviu. O que poderia fazer?

Todos os dias o telefone da academia tocava insistentemente no horário de seu almoço ou aparecia alguém na recepção para atrapalhar sua refeição, mas justamente naquele dia em que ela torcia para que isso acontecesse e pedia ao Cosmos que um meteoro caísse na Terra para se livrar da conversa super “agradável” de Januário, nada aconteceu.

Ele contou que se casou, que teve filhos, que se separou, que casou outra vez, que trabalhou com o pai, com o irmão, como vendedor, segurança, numa fábrica; que continuava morando próximo ao bairro onde eles moravam, que isso, que aquilo… senta que a história é longa!

A expressão facial e corporal de Julimara dizia: Desaparece da minha frente antes que eu encarne o Hannibal Lecter e faça picadinho de você.

O temido Hannibal Lecter. Imagem: Internet.

Ele não percebia nada. Aliás, como na adolescência, seguia tapado de tudo.

Por fim, antes de se despedir, ele ainda trouxe uma memória afetiva romântica dos dois.

Januário era apaixonado por Julimara – por isso a stalkiava sempre. Imaginem só se nesta época existisse Instagram. Coitada dela!

A timidez de Januário, no entanto, não permitia que ele se declarasse para saber se seus ternos sentimentos afetuosos eram correspondidos. Ele teve, então, uma grande e brilhante ideia. Escreveu uma carta e colocou no correio para ela. (Não sei se vocês sabem, mas antigamente as pessoas escreviam cartas umas para outras e o carteiro as entregava. Não existiam computadores nem celulares para mensagens tão instantâneas como hoje).

Um detalhe importante: o belo “casal” morava na mesma rua. Januário poderia simplesmente ter ido até o portão da casa dela e colocado sua carta romântica na caixinha do correio. Mas não. Ele queria fazer direito.

O único problema de sua empreitada tão bem arquitetada é que ele era tão lesado (lesado no sentido amplo da palavra) que, ao invés de colocar o endereço da amada no envelope, se confundiu e colocou o número de sua própria casa.

A carta por fim foi entregue em seu endereço e quem a recebeu do carteiro foi seu pai que estava saindo para o trabalho. O homem não entendeu nada. Afinal, não havia ninguém com aquele nome em seu endereço. Resolveu abrir a correspondência e se deparou com lindos versos apaixonados que seu filho de onze anos havia escrito para a vizinha do final da rua.

Resultado: levou uma bronca de meia hora do pai e ele ainda o mandou parar de ser besta e arrumar alguma coisa útil para fazer. Como se não bastasse, ainda foi super zombado pelo irmão e pelos colegas da escola porque acabou contando a eles o que havia acontecido.

Lesura nível master!

Os alunos começaram a chegar e Julimara apenas se despediu do “simpático e falante” entregador seriamente convencida de que jamais faria outro pedido por aquele aplicativo.

– Olha só. Fica com meu número. – ele sugeriu. – Quando quiser outro pedido, pode enviar mensagem direto para mim. Eu faço questão de trazer para gente continuar a colocar o papo em dia.

– Claro. Vai ser um prazer. – ela sorriu de canto de boca e o fuzilou com os olhos.

Assim que ele desceu as escadas, a pobre Julimara se queixou mentalmente de não tê-lo jogado pela janela e dado fim aquele sofrimento.

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Tags:, , , , , , , , , Last modified: 2 de janeiro de 2021

Ellen Costa é o pseudônimo de Jucelene Oliveira, jornalista e escritora. Apaixonada por ouvir e contar histórias. Autora dos livros "Baque: você tem coragem de descobrir a verdade?" e "Crônicas da vida real", ambos disponível em e-book na Amazon. Idealizadora do Arte de Escrever. Instagram @ellencostaescritora