Written by: Literatura Resenha de Livros

Resenha: A dura verdade revelada “Por baixo dos tapetes” de Clau Stucki

Aos 16 ou 17 anos eu li “Feliz ano velho” (Editora Brasiliense e Objetiva, 1982) de Marcelo Rubens Paiva. Esse livro autobiográfico foi uma paulada no meu estômago. Precisei de dias, semanas, acho que até meses para me “recuperar” da narrativa sincera, dramática e real contada naquelas páginas.

Para quem não conhece o escritor e jornalista ou mesmo nunca teve contato com o livro, “Feliz ano velho” conta a história de Marcelo aos 19 anos, quando sofreu (quando causou) um acidente “idiota” que lhe tirou os movimentos do corpo do pescoço para baixo.

Imaginem que ele era um jovem alegre e despreocupado com a vida, estava fazendo faculdade na Unicamp e tinha por principais preocupações tirar boas notas e ir em festas no final de semana. De repente, num ato impensado e afobado, em meio à embriaguez e zoeira com os amigos, mergulhou de cabeça em uma pedra na beira da praia para acordar horas depois na condição de tetraplégico.

Pesado, não?

Esse livro e, principalmente a narrativa tão sincera e transparente que o escritor faz, me fizeram remoer esta história por muito tempo. Como eu disse no início do texto, era adolescente ainda e estava tendo meu primeiro contato com um drama dessa magnitude emocional. Várias coisas me fizeram ler, reler e ruminar o livro. Era como se eu o conhecesse, era como se conseguisse sentir a dor que ele sentia ao narrar isso anos depois do ocorrido. O próprio título já traz a ideia de que a vida dele dali em diante poderia não ser mais tão feliz.

Eu devo ter lido outros livros baseados em histórias reais ao longo da minha vida de leitora ávida, mas confesso que não tenho lembrança de nada que tenha me marcado tanto como pessoa em processo de formação quanto esse.

Por que me lembrei dele agora? Porque no final do ano passado tive contato com um outro livro que, igualmente ao anterior, me jogou na parede, me deu socos no estômago, me fez perder o sono e algumas vezes dormir preocupada com a personagem real da trama; arrancou meu coração com um único golpe; ainda estou tentando achar o caminho de volta para casa. Minha alma ainda dói e meu corpo carrega marcas cravadas.

Refiro-me ao livro “Por baixo dos tapetes” (Editora Viseu) de Clau Stucki. @porbaixodostapetes 

Dizer que esse livro é denso é praticamente um eufemismo. Dizer que é doloroso não é de forma alguma uma hipérbole.


É um livro que precisa se tornar best-seller (torço com todas as minhas forças para isso). Ele deve alcançar o máximo de leitores possíveis no Brasil e no mundo porque mostra realidades ainda escondidas embaixo dos tapetes sociais, culturais e familiares. Nesta narrativa não-ficcional, Clau Stucki conta suas vivências e memória da infância e adolescência sem economizar um adjetivo sequer da vida real.

Ela sofreu horrores. Sua vida nunca foi fácil ou divertida. Mesmo assim, ela sobreviveu e segue na luta pela sobrevivência diária. Para adquirir a obra, clique aqui.

O livro é como um diário íntimo que ela nos permite ter acesso. Obrigada por isso, Clau. Ela não usa filtros e tampouco nos poupa dos mínimos detalhes, dos mais peculiares e moralmente escondidos que a convenção social diz não ser bonito mostrar.

Ela narra cronologicamente sua vida pobre e sem perspectivas numa família com pouquíssima instrução, demasiada pobreza e muito desamor. Acredito que houve, sim, momentos de alegria e afeto familiar, mas as marcas da dor, do desprezo e da violência que sofreu são tão mais fortes e marcadas que é como se embaçassem quaisquer outras lembranças que valessem a pena levar para o futuro e contar aos filhos e netos.

Clau não teve o afeto sincero e protetor de uma mãe. Como isso é possível? Penso (e pretendo morrer acreditando nisso) que as mães doentes e negligentes são poucas. É uma pena que elas existam, mas a grande maioria são mulheres que matam e morrem por suas crias como uma leoa feroz.

Clau teve o amor, o sustento e o cuidado do pai até um determinado momento. Houve uma situação pontual que o afastou da família e nesse processo ela percebeu o quanto ele era um homem fraco e negligente, emocionalmente falando. É claro que ele também devia estar sofrendo muito (não podemos simplesmente julgá-lo), mas como ela mesma analisou “o adulto ali que poderia fazer a diferença no rumo do destino de todos os filhos pequenos era ele”. Talvez precisasse aceitar isso e agir de maneira racional e responsável. Mas, não. Ele optou pelo ostracismo.

Clau não teve amizade, lealdade ou proximidade sincera com os irmãos (e olha que eram muitos). Segundo relata, sua mãe tinha predileção por alguns deles e, se para alguns ela oferecia o que tinha de melhor, à filha Clau restava-lhe apenas o desprezo. E o nocivo convívio com os irmãos acentuava ainda mais essas diferenças.

Clau cresceu em meio à hipocrisia de pessoas que se diziam cristãs praticantes (uso a expressão “se diziam” porque alguém que crê verdadeiramente no evangelho de Jesus Cristo e foi tocado por Ele não consegue ser ruim, mesquinho e desonesto) como ela relata que os religiosos que frequentavam sua casa se mostravam ser. Esse mau testemunho gerou no coração de Clau um distanciamento proposital da religião (já que ela só via interesse ou maldade na prática religiosa), estendendo-se ao amor incondicional de Deus.

Sua única irmã-amiga era Nina, acho que sua irmã mais velha. Ela foi embora por um tempo sem que ninguém soubesse o motivo e retornou tempos depois com uma criança no colo. Vale lembrar que estamos falando de uma família e uma história que ocorreu há quase 40 anos numa cidade pequena do interior de São Paulo. Os tempos eram outros.

Essa pequena protagonista precisava trabalhar para ajudar nas despesas da casa e as condições que lhe ofertaram foram as mais precárias, desumanas e insalubres possíveis. Mais dor e sofrimento estavam por vir.

Ela tinha apenas 11 anos e estava fazendo um trabalho pesado e ariscado até para um homem adulto. E como se não bastasse uma existência tão dura e sem qualquer vestígio de ternura, ainda sofreu um terrível abuso sexual infantil. Da boca de seu agressor ela ainda teve de ouvir palavras debochadas: “não tem nem peitinhos ainda”.

Os spoilers que dou aqui não diminuem em nada a força do relato que ela faz; tenho certeza que não atrapalharão a leitura que outras pessoas farão. O contato com este livro traz uma experiência muito particular em cada um. Mesmo sabendo o que esperar nas páginas de “Por baixo dos tapetes” eu queria ler e conferir com meus próprios olhos. E acredito que você também vai se sentir estimulado ou estimulada a isso.

O tempo seguiu mais adiante e parece que a sorte sorriu um pouco para a menina triste e resignada com a vida que ela se tornara. Foi então que teve alguns momentos de alegria, zelo e atenção ao se tornar “companhia” de uma moça chamada Ana, que morava sozinha numa casa muito boa e grande, sustentada por um “coronel” casado que lhe visitava aos fins de semana.

Clau conta que nunca tinha usado xampu para lavar os cabelos. Que nunca teve alguém penteando e passando cremes cheirosos nele. Que nunca havia se sentado à mesa para saborear uma refeição preparada com todo carinho para ela. Que nunca teve roupas novas. Tocante.

Fatos acontecem e mais uma vez levamos um novo soco no estômago. A mãe dela – ao perder o dinheiro que a cuidadora Ana lhe enviada – quis a menina de volta, causando uma problemática terrível na aquietação da qual ela desfrutava. Ana havia decidido investir o dinheiro no bem-estar da garota por quem demonstrava sincero afeto.

Outra coisa que chama muito a atenção no livro é o fato dessa “personagem” real se manter relativamente sóbria, apesar de tudo que sofreu passivamente. Ela cria uma casca em volta de si para sobreviver, mas arrisco-me a dizer que por dentro havia alguém totalmente vulnerável e fragilizada pelos desmazelos vividos.

Outra situação nos coloca novamente de joelhos, rendidos e cúmplices da cultura da violência social. Ela sofre um novo abuso sexual, agora no início da adolescência. E desta vez não foi um capataz da roça onde trabalhava, foi alguém que ela não esperava de forma alguma. Um homem feito, vivido, conhecido e respeitado na região. A autora desta narrativa foi vítima e ainda precisou se calar para não desencadear outros problemas para si.

Mas Clau se mostra tão corajosa e intolerante à violência que não mede esforços para tentar dar fim a essa dor. Mesmo muitos anos depois ela diz o nome e sobrenome do homem que fez essa barbaridade em seu corpo e alma. No livro ela revela todos os donos de suas feridas.

Ainda acontecem muitas outras coisas nas páginas que se seguiram: ela conhece pessoas que lhe ajudam de verdade; começa a estudar, é acolhida por um homem que se apaixona por ela e quer lhe ter como esposa; tem seu coração partido, tem planos frustrados, é colocada à prova por uma situação de doença, entre outras coisas, mas deixo essas descobertas para você, leitor.

Muitas situações nesta obra valeriam horas e horas de conversa. Fiquei tão tocada e impactada que escrevi a ela pedindo que respondesse “um milhão” de dúvidas que se abriram quando fechei o livro. Ela me contou que haverá um segundo livro, uma continuação na qual as lacunas que ficaram abertas são preenchidas.

A previsão é que esse livro seja lançado na Bienal do Livro de São Paulo deste ano. E olha que Clau vive na Suíça há muitos anos.

Estou ansiosa e preparando o coração para a parte dois. Passar por tudo que essa menina-adolescente-mulher-sobrevivente passou e não se entregar à loucura ou a descrença total e absoluta é de fato um ato admirável.

Clau, você tem uma admiradora em mim.

Gostou do artigo? Deixe um comentário abaixo. Compartilhe com seus amigos.

(Visited 55 times, 1 visits today)
Tags:, , , , , , , , , , , , , Last modified: 19 de maio de 2020

Ellen Costa é o pseudônimo de Jucelene Oliveira, jornalista e escritora. Apaixonada por ouvir e contar histórias. Autora dos livros "Baque: você tem coragem de descobrir a verdade?" e "Crônicas da vida real", ambos disponível em e-book na Amazon. Idealizadora do Arte de Escrever. Instagram @ellencostaescritora