Esta é uma curta história que retrata um cenário muito comum da vida pós-moderna. Vida esta que em sua dureza não poupa a humanos. E menos ainda a gatos.
Naquela noite, após uma intensa e nada equilibrada discussão familiar, a garota dormiu. Não se trata de uma garota rebelde como os adolescentes costumam ser. Ela só queria uma “família normal”, era o que sempre dizia.
Enquanto isso, em outra casa não muito longe dali, um gato dormia com seus irmãos, todos amontoados como os filhotes fazem, dividindo o calor de seus corpos para sobreviverem a mais uma noite fria.
A garota teve um sono leve e desconfortável, com uma sensação constante de estar acordada; sentia calafrios, estava com febre e a dor de cabeça não lhe deixava. Sua saúde era afetada pelas desavenças que assolavam aquela família.
Com a queda de sua imunidade pelo fator emocional, convalesceu. E teria sido pior, porém a vida, apesar de injusta, não é um mero acaso. Ela é subjugada pelo seu Criador e Ele tem o incrível talento de transformar coisas. E se Ele muda o imutável aos olhos humanos, por que não conseguiria mudar o curso de apenas duas vidas?
E foi assim que o nascer do sol aproximou dois caminhos, dois destinos. E fez deles um só.
Provavelmente o gato não faz ideia de como chegou lá e nem onde estava, mas era frio e molhado. Também não ouvia mais seus irmãos e nem sua mãe. Ao abrir os olhos se deparou com um mundo muito grande e cruel para seu pequeno e ferido corpinho. Aos olhos humanos era apenas um campo molhado pela chuva da noite anterior; para ele, o fim, mas para o Autor, o início.
Muitos passaram pelo pequeno gato, ouviram seu pedido desesperado de socorro e ignoraram.
Neste mesmo instante, em casa, a garota levanta de sua cama e vai em direção ao banheiro, sentindo dor na cabeça, em estado febril. Ela olha o rosto abatido no espelho e sai. Bebe água e volta a se deitar. Fica jogada na cama refletindo sobre tudo e, ao mesmo tempo, em nada.
Quando o sono finalmente começa a retornar ao seu corpo, a porta se abre e ela salta da cama em direção a seus pais que entraram com o pequeno gato enrolado na blusa da mãe. Seus olhos brilharam e um sorriso iluminou seu rosto. Ela passou de um estado deprimido para o ser humano mais feliz naquela manhã, em questão de segundos. De imediato providenciou algo para alimentá-lo, e enquanto o gato se fartava de leite morno, ela apenas o observava.
— Trouxemos ele para cuidar um pouco e depois levá-lo para adoção. — disse a mãe.
O gato, após se fartar, foi em direção à garota, sentada no chão com as pernas cruzadas. Sem nenhum medo ou receio, ele se aconchegou entre suas pernas e encolhido como uma bolinha, dormiu. Enfim, pode descansar. Naquele momento a garota teve certeza de que ele nunca mais deixaria a sua vida.
Os meses que se seguiram não foram belos e nem fáceis, mas ela tinha a ele e ele tinha a ela. O gato ganhou nome, amor, uma família, um lar. Cresceu e se tornou muito belo, olhos azuis e pelagem de padrão siamês. Sua personalidade era brincalhona, gentil e muito manhoso, sempre retribuindo todo o amor que recebeu. Se quem o abandonou soubesse o que ele se tornaria, enfim.
A vida que parecia ter alcançado certa solidez reservava, ainda, alguns acontecimentos.
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Após seis meses algo mudou no comportamento do gato. Ele passou a miar intensamente durante a noite, entrando e saindo inquietamente do banheiro. Durante uma semana, a garota agiu como se o gato estivesse com “manha” e por muitas vezes o repreendeu para que fosse dormir.
Em algumas ocasiões gracejou do fato de o gato miar toda noite. Apesar disso, o gato continuava a miar por um tempo e depois, como se tivesse desistido de algo, dormia.
Contudo, numa certa noite, os miados duraram mais tempo e ela, finalmente, se preocupou. Levantou da cama, o pegou no colo e o levou para perto de si, tentando acalmá-lo, mas o gato continuava inquieto e voltava a miar dentro do banheiro. Até que algo lhe ocorreu.
Quando o gato foi resgatado não estava só, foi deixado naquele campo com todos os seus irmãos, e uma de suas irmãs permaneceu junto dele.
— Enquanto caminhávamos, ele nos seguia correndo e parando, eventualmente, para chamar a irmã que vinha logo atrás, como se dissesse para ela “Vamos! Rápido! Eles vão nos salvar! Não podemos perdê-los!” — relatou a mãe no dia em que resgatou os dois filhotes.
A gatinha frajola de olhos verdes foi batizada pela garota com o nome Khloe, que significava “esverdeada” e vinha do nórdico antigo. Sua nova guardiã não era alguém que poderíamos chamar de comum. Sempre buscava um sentido maior para as coisas.
No dia que se seguiu ao resgate, a garota resolveu limpá-los e, enquanto banhava a gata, notou diversos ferimentos semelhantes a queimaduras, antes encobertos sob a pelagem, por todo corpo da felina. Quis chorar. Não podia acreditar no que via.
Infelizmente, dia após dia, mais ferimentos se revelaram. A pequena parou de se alimentar por ter tido sua língua corroída por alguma espécie de ácido. Antibióticos, pomadas e curativos amenizaram… fizeram de tudo, inclusive alimentá-la com uma seringa, mas não foi o suficiente para salvá-la.
Khloe partiu deste mundo nos braços da garota, sentindo dor, enquanto ela tentava, em vão, reanimá-la.
Quando suas pupilas se dilataram por completo, confirmando que a vida havia deixado seu corpo, ela não pôde conter as lágrimas e ali na solitária lavanderia da casa, diante do pequeno corpinho sem vida, a garota se sentiu insuficiente, sentimento que conhecia bem, além de incapaz.
Mas como poderia ela, uma simples garota, ser capaz de deter a maldade da raça humana?
Esses acontecimentos retornaram à sua memória e ela ligou os fatos.
Após a morte de sua irmã, o gato sempre estava nos lugares onde a gatinha dormia e nos primeiros dias em que eles chegaram à casa, dormiam juntos no banheiro, para não ficarem andando pela casa durante a noite.
Lembrou-se, também, que na cama dos irmãos foi colocado uma pelúcia para ajudá-los a dormir. Levantou-se rapidamente e, no escuro, começou a procurar pela pelúcia, na esperança de que nela ainda existisse algum resquício do cheiro da gatinha.
Não demorou muito a encontrá-la. Chamou o gato e mostrou a ele a pelúcia. O gato cheirou e passou a lambê-la, como se tivesse reconhecido o cheiro da irmã que ainda estava ali.
A garota se emocionou com a cena. O bichano, que passou boa parte da noite inconsolável, estava agora deitado ao lado da pelúcia que pertencia à sua irmã. E finalmente acalmou-se.
O gato estava passando por um longo período de luto e ela simplesmente ignorou seus sentimentos. Foi o que sentiu. Apenas o usou para aliviar o próprio desconforto. Sentiu culpa. Como poderia dizer que o amava?
O Autor o colocou em sua vida para mudar dois destinos, mas a garota se concentrou apenas em sua dor, seu sentimento, fazendo pouco caso do objetivo inicial. Esqueceu-se de algo importante: nessa história, não era apenas ela a personagem principal.
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Estou sempre por aqui lendo seus contos. Parabéns!!!
Que lindo!
Muito bom ter você por aqui minha amiga, e agora, leitora, que honra! <3
Amei seu texto!!! Excelente enredo, muito envolvente! Crônica excelente para quem gosta de bichinhos como eu! 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻
Obrigado por me prestigiar como leitora Pam! Seu apoio como amiga é muito importante! Aguarde que logo logo vem mais.