Algumas lutas são solitárias: resenha do filme “Sequestros de Cleveland”

Written by: Cinema Destaque Resenha de Filmes

Outro dia assisti um filme na Netflix – baseado numa dura história real – e fiquei alguns dias pensando sobre a trama. Tentando digerir o sofrimento que as personagens enfrentaram anos a fio.

Quem já conferiu “O quarto de Jack” (2016) consegue imaginar o que “Sequestros de Cleveland” (2013) trata em sua essência. A diferença de um para outro, claro, é que o primeiro é algo fictício, embora inspirado em muitos casos reais que eclodiram nos telejornais e internet nos últimos anos (sobre sequestros e cárcere privado de vítimas). O segundo é verdadeiro – e por isso, tão doloroso – com toques de crueldade do início ao fim.

A história de Michelle Knight não é daquelas que passam despercebidas. À época do ocorrido era uma jovem de 21 anos indo a uma audiência de custódia para reaver a guarda de seu filho (sob os cuidados da assistência social), quando se viu numa emboscada. Detalhe: o pai de uma colega da escola estava à frente do sequestro. E ele a manteve em cativeiro por 11 anos.

Injusto demais.

O que particularmente me tocou foi a esperança de sobrevivência que ela alimentou dia a dia, mês a mês, ano a ano, a fim de reencontrar seu filho de apenas 5 anos. Como possivelmente Michelle não imaginou que ficaria confinada por tanto tempo, essa esperança foi o combustível para seu motor funcionar frente à violência sofrida (e que não foi pouca), além dos maus-tratos, desnutrição, solidão, arbitrariedades diversas.

Todas às vezes em que seu algoz abria a porta do quarto para abusar de uma menina magricela e com pouca expressão, ele fazia parecer estar sendo bom com ela. Como se ela não tivesse nada mais interessante para viver lá fora.

A personagem real muitas vezes é apática a tudo ao seu entorno e as lembranças de seu menino gracioso – as brincadeiras, passeios e tempo passado com ele – são o consolo dela para os dias mais difíceis. São também o nosso, expectadores vulneráveis. Apenas nós sabemos do cativeiro dela, e nada podemos fazer para ajudá-la.

Casa de Ariel, onde as três mulheres ficaram presas / Crédito: Wikimedia Commons

Profundamente solitária

A dor de Michelle Knight é profundamente solitária. Sua luta antes do sequestro já era solitária.

E como o filme é de baixo orçamento e duração, muita coisa que poderia ter sido explorada na narrativa, o diretor acabou deixando de fora. Nada contou ou mostrou sobre sua mãe e filho após seu desaparecimento.

A pressão psicológica e a vulnerabilidade as quais Michelle estava exposta eram tão contundentes que há momentos no filme em que achamos que ela poderia fugir – quando foi levada ao quintal, por exemplo, para ajudar seu algoz em um serviço com madeira. Embora estivesse acorrentada, nós desejamos que ela tente fugir ou gritar. E nada acontece.

Onde estão os vizinhos? Por que eles não desconfiam de Ariel?

Antes e depois de Michelle Knight, Georgina DeJesus e Amanda Berry – Divulgação/Arquivo Pessoal

À exceção de Ariel Castro, o abusador, nenhum vizinho, parente ou amigo dele sabia que no quarto superior da casa havia uma jovem acorrentada dia e noite, na maior parte do tempo com um pano na boca para não gritar ou pedir socorro.

O que já era um circo de horrores ganhou novo episódio bizarro quando, meses depois do sequestro, Michele ganha a companhia de novas integrantes – outras duas meninas, ainda mais jovens que ela, também sequestradas. Os eventos ocorrem entre 2002 e 2004.

Antes disso, Ariel havia lhe presenteado com um filhote de cachorro (para ela ter “alguém” para cuidar e se distrair). Contudo, sua generosidade logo é limitada e Michelle passa por outra perda dolorosa.

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Crueldade psicológica

Tempos depois, ele trouxe uma TV.

E para quem acha que esse presente era para propor algum tipo de alegria, ver as notícias sobre o desaparecimento das outras jovens e o sofrimento de suas famílias, não era nada reconfortante para ela.

Isso sem falar que diferente das outras meninas que se tornaram suas colegas de “cela” – Michele não tinha ninguém lá fora para chorar sua ausência, para fazer apelo nas ruas pedindo paz ou tentando comover o coração do sequestrador (ou assassino) de deixá-la voltar para casa ou se render, e dar fim àquela agonia de todos.

O caso de Michelle Knight é real, cruel e, sobretudo, solitário.

Isso me fez pensar nas lutas que travamos todos os dias e que ninguém conhece.

Sabe aquela expressão popular sobre “matar um leão” por dia. Às vezes isso significa enfrentar o trânsito pesado de grandes metrópoles, como São Paulo, pagar muitas dívidas, ter uma negativa no trabalho, ou ver os filhos precisando de uma roupa nova e não ter dinheiro para prover isso.

Tudo isso parece pequeno diante da tentativa de apenas sobrevivência de uma vítima sem defesa como eram aquelas três garotas.

Seja como for, cada um de nós sabe de suas dores. Compartilháveis ou não, para vencê-las (ou aceitá-las), é preciso ter coragem e esperança (assim como Michele teve).

Quando a personagem real finalmente é libertada, ainda terá de enfrentar uma nova luta: a realidade transcorrida lá fora após onze anos. Afinal, a vida não parou para as outras pessoas.

Para quem gosta de dramas reais, daqueles que machucam com força o coração, “Sequestros de Cleveland” é uma boa alternativa. O filme foi produzido a partir dos relatos de Michelle no livro “Libertada – Uma década de escuridão, uma vida recuperada”, disponível para venda na Amazon.

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Tags:, , , , , Last modified: 2 de junho de 2022

Ellen Costa é o pseudônimo de Jucelene Oliveira, jornalista e escritora. Apaixonada por ouvir e contar histórias. Autora dos livros "Baque: você tem coragem de descobrir a verdade?" e "Crônicas da vida real", ambos disponível em e-book na Amazon. Idealizadora do Arte de Escrever. Instagram @ellencostaescritora