Crônica: Lembranças da minha infância clandestina

Minha boneca Isabel, tão especial quanto meus livros. Foto: Juh Oliveira

Written by: Crônicas

Tocada por nostalgia.

Quando criança vivi uma infância pobre. Meus pais tinham profissões de baixa remuneração, não haviam sequer concluído a escola básica e eram, por consequência, pessoas simples que labutavam pelo pão nosso de cada dia com empenho e algum estresse.

Aos oito ou nove anos comecei a me deslumbrar pelas bonecas que falavam, cantavam ou emitiam qualquer som ambiente. Pareciam querer se comunicar comigo. Meus olhos brilhavam. Eu era uma criança romantizada pela ideia de cuidar de uma boneca que chamaria de filha.

Mas assim como a menina pobre recifense de oito anos do conto “Restos do Carnaval” da maravilhosa Clarice Lispector, aquela realidade estava alheia a mim. E se me permitem a paráfrase, via o “Carnaval” apenas pela janela, como narra com nostalgia a triste protagonista do conto literário.

É claro que só fui conhecer Clarice anos depois, quase adulta… mas como ela me fez, com esta produção sensível, revisitar o passado da minha infância clandestina…

Mas voltando à boneca, minha família não tinha dinheiro para bobagens de criança. Isso era óbvio. Na verdade, brincar era algo legítimo e válido para meus pais. Contudo, o dinheiro que entrava em casa era para as necessidades básicas: arroz, feijão, conta de água, de luz… mal dava para isso, algumas vezes (verdade seja dita). Ponto final.

E assim, sonhei, sofri, vivi, senti e chorei com aquele desejo que aflorava, fervia e crescia dentro do meu ser. Minhas colegas da escola, quase todas tinham a boneca Barbie. Até algumas menos favorecidas do que eu, financeiramente falando (se me permitem o eufemismo), ostentavam a beldade loira apática e magricela diante de mim, pois tinham recebido como presente de primas que não queriam mais a boneca; herdado de alguma colega que ganhou outra melhor ou de uma nova coleção.

E o que já era triste e desesperador, conseguiu ficar pior.

O desejo pela boneca ganhou uma dimensão ainda maior e mais dramática, quando, certa vez a professora sugeriu que para comemorar o Dia das Crianças, todos os alunos levassem seu brinquedo favorito para brincar em sala de aula e claro, compartilhar com os colegas. Até hoje me pergunto por qual razão ela cometeu tamanha atrocidade comigo. O que eu fiz para aquela mulher?

E como explicar à minha mãe que precisava levar um brinquedo decente, que tivesse valor ou estima diante dos meus colegas de classe? Não sei se vocês sabem, mas as crianças são antipáticas e competitivas desde sempre. Lembro de algumas delas falando sobre a profissão do pai e da mãe. Esse assunto era outro tabu pra mim. “Meu pai trabalha na Globo” uma disse certa vez. Não faço ideia da profissão ou função que ele desempenhava lá. Talvez fosse segurança, zelador, cozinheiro. Em tese não seria nada demais, mas trabalhar na Globo já colocava essa colega anos luz a nossa frente.

Outra colega dizia que o “pai era advogado”. Isso era tão incrível e admirável para mim. Advogado! Na minha cabeça ele ganhava rios de dinheiro e poderia comprar todas as bonecas do mundo que ela quisesse.

Sobre minha mãe, que na ocasião vivia à procura de um emprego, podendo ser ele qualquer coisa que nos tirasse do sufoco, ela se ofenderia ou brigaria comigo se percebesse que eu me sentia envergonhada com aqueles brinquedos improvisados da minha humilde coleção particular, às vezes produzidos artesanalmente por ela com retalhos de roupas e lençóis. Engraçado que hoje é super estiloso ter boneca de pano. Oh mundo cruel!

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Simplesmente não dava para levar aquela imitação barata de Barbie que ganhei, nem sei de quem, que estava velha e suja de tanto brincar com ela! Pensei em ficar doente no dia; pensei em pedir para faltar à aula; pensei e pensava em como escapar daquela arapuca que estava diante de mim. O que fazer? É muito estresse para uma criança passar!

Minha boneca Isabel, tão especial quanto meus livros. Foto: Juh Oliveira
Minha boneca Isabel, tão especial quanto meus livros. Foto: Ellen Costa

Conforme o dia se aproximava e eu ia testemunhando a empolgação dos meus colegas pela festinha de criança, mais apreensiva ficava. Sinceramente? Deveria ser proibido por lei, com pena capital ou prisão perpétua, que uma criança de oito ou nove anos seja submetida a um constrangimento tão desumano!

Mas como a vida é cheia de surpresas e, às vezes o sol também nascia no meu quintal (que nas palavras do poeta Manuel de Barros “é maior do que o mundo”), uma colega de classe, que eu considerava rica e antipática, resolveu me socorrer (sabe Deus por qual motivo). Ela tinha um exército de bonecas Barbies originais e disse que traria uma delas para eu brincar.

Agora pensem qual foi minha reação! Por fora, agradeci resolutamente, como convém à boa educação familiar. Por dentro, comemorei como a chegada do ano novo, com muitos fogos de artifício e sem nenhuma parcimônia.

E a data se aproximava a passos largos. As horas eram minutos e a euforia do meu pequeno coração de criança já não cabia dentro do peito. E quando via os comerciais que passavam na TV de casa, sentia-me quase flutuando. Finalmente iria brincar com uma boneca de verdade. Que alegria!

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Querem saber o desfecho dessa história de amor e fúria, felicidade e dor, prazer e nostalgia?

Pois bem: no dia marcado para a tal festinha das crianças, cheguei cedo e cheia de expectativas e anseios. A professora e algumas colegas já estavam arrumando a sala, cobrindo as mesas com toalhas coloridas de plástico e dispondo os lanches que seriam servidos. Balões já enfeitavam as paredes e alguns cartazes de “Feliz Dia das Crianças” estavam colados.

Minha pseudo colega cheia de boas intenções chegou bem atrasada. De cabelos presos e andar firme, passou pelos colegas e se jogou ao chão, próximo ao monte de brinquedos que já ocupava o centro da sala. Meu coração já dava sinais de uma síncope precoce e iminente. “Alguém me segure, por favor!”, foi o que clamei sem ninguém ouvir.

Quando tirou os brinquedos da mochila e colocou-os no chão, junto aos demais que ali estavam, não havia uma segunda boneca na bolsa. Leram bem? Não havia uma segunda boneca! A mochila foi todinha esvaziada, brinquedo por brinquedo (e olha que ela levou um arsenal variado), mas boneca mesmo, ela só levou uma – a dela – a boneca que iria brincar. E se mostrou incapaz de olhar na minha direção para desculpar-se pela traição mesquinha e insensível.

Nem consigo me lembrar como foi a festa naquele dia…

Só sei que o tempo passou e a vida seguiu seu curso…

Dois anos depois ou um pouco mais, talvez, ganhei minha primeira (e até onde lembro) única boneca à pilha falante. Linda! Loirinha, tinha uma chupeta, uma mamadeira e usava uma roupinha de frio azul de lã, típica de inverno. Ela falava “mamãe” e “quero mamar”. Também chorava se ficasse muito tempo sem a chupeta. Presente suado e sofrido de minha mãe, minha preciosa mãe, que foi guerreira e obstinada para juntar dinheiro meses a fio com o intuito de presentear a mim e meus irmãos com um brinquedo que nos fizesse brilhar os olhos. E eles brilharam como lanterna. De nós três.

Não me lembro ao certo por quanto tempo essa boneca ficou comigo. Mas me lembro dela até hoje, com riqueza singela de detalhes. É uma daquelas lembranças que cem anos não podem apagar… sequer embaçar.

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Tags:, , , , , , , Last modified: 18 de agosto de 2021

Ellen Costa é o pseudônimo de Jucelene Oliveira, jornalista e escritora. Apaixonada por ouvir e contar histórias. Autora dos livros "Baque: você tem coragem de descobrir a verdade?" e "Crônicas da vida real", ambos disponível em e-book na Amazon. Idealizadora do Arte de Escrever. Instagram @ellencostaescritora