Crônica: Os picaretas da rua Catanduva

Símbolo da justiça. Imagem: Free Pik.

Written by: Crônicas

Era domingo e dona Sidcreusa estava sozinha em casa. Enquanto assistia distraidamente à programação repetitiva de domingo, foi interrompida pelo barulho chato da campainha, que mais servia para atrapalhar a paz do ambiente do que qualquer outra coisa.

Havia meses que a casa dos fundos estava à espera de uma família ou casal decente para alugá-la e, apesar de o dinheiro do aluguel ser muito bem-vindo, colocar placa indicativa era algo fora de cogitação. Aquele espaço seria ocupado por alguém conhecido ou muito bem indicado. Esse era o plano.

Voltando à campainha, dona Sidcreusa esperou mais um toque para ter certeza de que não eram crianças brincando para chamar atenção, religiosos incansáveis que brotavam naquela rua, ou algum vendedor de panos de prato que não se cansava de receber “nãos”. Novamente ouviu o som que insistia em ser atendido e resolveu descer para verificar.

A mulher parada diante do portão devia pesar uns 160 quilos e estava com uma aparência cansada e sofrida. Disse que gostaria de ver a casa para alugar, pois sua família vivia em um local muito úmido, sem privacidade ou segurança, ainda receava que a qualquer momento as paredes acabassem cedendo e a casa viesse abaixo. Segundo ela, já tinha rodado o bairro todo à procura de um novo lar e estava exausta e com fome. Coitada!

Como era de costume, dona Sidcreusa mostrou a casa para a mulher interessada e colocou as condições do aluguel. A “dona sofrida” disse que o lugar era ótimo e comportaria bem os filhos e o marido; sinalizou que já gostaria de se mudar ainda naquele domingo, mas que infelizmente, não dispunha no momento, do valor total para acertar o aluguel.

Esse já foi o primeiro indício do que estava por vir.

Há um detalhe muito importante que precisa ser registrado aqui e que você, caro leitor, não pode perder de vista de jeito nenhum: dona Sidcreusa era o tipo de mulher que, se o Papa em carne e osso (digo, o Papa de verdade, aquele que vive no Vaticano e celebra missas pela paz do mundo inteiro em vários idiomas), tocasse sua campainha e lhe pedisse um simples copo de água, ela teria certeza de que se tratava de um golpe, talvez uma terrível conspiração internacional ou ainda uma gangue muito bem administrada pelo Comando Vermelho ou algo equivalente.

Que Papa, que nada! Ela não caía em truques fajutos. Era uma mulher viva e esperta!

Se algo do gênero sequer fosse cogitado, com certeza seria um golpe muito bem articulado que estava agindo na região, talvez o PCC, que se aproveitava da inocência e boa-fé das pessoas de bem. Eles colocavam um homem vestido de Papa, tão convincente que chegava a falar uns 40 idiomas e, quando o dono da casa abria o portão para lhe dar a água solicitada, eles invadiam, roubavam tudo, amarravam os moradores e causavam um stress psicológico muito grande em toda família.

Ela jamais cairia nesse tipo de enrosco.

Seu raciocínio de autodefesa e preservação valia, inclusive, para qualquer outra figura boa, nobre ou admirada na mídia por feitos religiosos, sociais ou culturais: Madre Tereza, Dalai Lama, Nelson Mandela, Malala, Angelina Jolie, Luciano Huck, Sílvio Santos etc. Todos estavam no radar.

Voltando à “entrevista” do aluguel, a mulher picareta continuava ali, parada diante da proprietária da casa, tentando convencê-la do quanto era importante poder contar com a compreensão e boa vontade de dona Sidcreusa.

Ainda nem tinha se mudado e já estava tentando tirar alguma vantagem!

– Junte o dinheiro, então, e volte quando for possível. – Foi a sugestão sensata da dona da casa. – Há outras pessoas interessadas em ver o espaço, mas não abro mão de dois aluguéis e do contrato assinado, com firma reconhecida em cartório. – explicou categoricamente.

– Mas meus filhos são pequenos! Tenho medo que a casa venha abaixo e que eles se machuquem. – Tentou comover e dissuadi-la com argumentos sentimentais. – A senhora tem filhos? – Insistiu ainda numa artimanha emocional infalível. – Sabe como nós, mães, somos? Se algo acontecer com nossos filhos, preferimos a morte.

Belo cruzado de direita!

– Além disso – a mulher continuou impávida -, cuido da minha irmã mais nova e solteira que tem câncer, pobrezinha. Ela faz tratamento em São Paulo. Pobrezinha (de novo para comover). A situação dela está muito complicada. Se não fizer o tratamento e tomar as medicações, nem sei o que pode acontecer nas próximas semanas. Ela só tem a mim. (começo de lágrimas e tom de voz mudando).

– Nossa, que situação! – Dona Sidcreusa estava começando a cair na conversa.

– Meu marido, coitado, está desempregado. É muito batalhador. Trabalha com o que aparece. Mas no momento vive apenas com alguns bicos para sustentar nossos filhos. – Contou com os olhos cheios de lágrimas. – Estamos vivendo apenas com a minha renda.

– E a senhora trabalha com o quê?

– Trabalho 47 horas por dia em um salão de cabeleireiro aqui próximo. – Disse de maneira assertiva e convincente, informando o nome da rua onde o tal salão funcionava. – A dona do salão me explora muito. É muito trabalho e pouco dinheiro. – E depois de uma nova pausa. – A senhora deve conhecer o salão. É bem popular.

Na rua informada pela mulher devia ter uns 420 salões de cabeleireiro, manicure, procedimentos estéticos e afins. Ela poderia dizer qualquer nome. Não faria diferença.

– Como soube dessa casa para alugar? – Questionou a proprietária curiosa, já que não havia placa de indicação na rua.

– Sua vizinha quem me falou. – Disse a mulher, informando o nome e sobrenome da vizinha que morava ao lado, visto que já havia “pesquisado” previamente como álibi para compor a fraude.

De fato, a tal vizinha já havia feito algumas indicações. – Pensou dona Sidcreusa e, antes de concluir seu raciocínio.

– Ela é minha amigona! – Completou a mulher como um novo tiro certeiro no peito.

E assim, a mulher foi embora com a promessa de voltar mais tarde (até o final da noite de domingo mesmo) com o dinheiro para o primeiro mês de aluguel e o depósito de segurança.

Quando a filha de dona Sidcreusa chegou em casa no final da noite, soube do interesse de alguém em alugar o local. Ficou surpresa quando, dois dias depois, deparou com pessoas estranhas colocando móveis e “bagunças” portão adentro.

E foi aí que a novela mexicana dramática e perturbadora começou com força.

Em menos de um mês já estava claro quem eram aquelas pessoas e do que viviam: eram picaretas profissionais, dignos de um estudo apurado. Além disso, eram usuários de drogas que se faziam de coitados para conseguir cestas básicas nas igrejas da região e na vizinhança e, mentindo, usufruíam de diversos benefícios e da solidariedade de tantas pessoas boas que se deixavam iludir pela incrível habilidade com as artes cênicas que eles dominavam bem.

As doações aos picaretas começaram e a revolta da proprietária do imóvel também.

Diversos carros paravam no portão de dona Sidcreusa à procura da família pobre e necessitada para ajudar. Cestas básicas a rodo, remédios diversos, roupas e cobertores que não acabavam mais, móveis como cadeira, fogão, mesa para a cozinha, caixas de leite que davam para abrir um mercado, calçados e materiais escolares para as crianças, algumas doações em dinheiro e uma infinidade de botijões de gás. Detalhe: botijão de gás costuma ser bem caro.

A chefe do bando recebia as pessoas com roupas maltrapilhas, descabelada e com semblante abatido e sofrido. Contava entre lágrimas e gemidos tristes as desventuras da família, as dificuldades do cotidiano; dizia que não tinha alimento naquele dia para dar às crianças, que o pobre marido só recebia portas na cara, que havia dias em que ele não conseguia trazer nem cinco reais para o pão das crianças e que a pobre irmã piorava a cada dia, passando mal e vomitando por várias noites seguidas por conta da quimioterapia que era tão agressiva para seu corpo.

Coitados! – Todos pensavam! – Que família sofrida e sem esperança!

Muitos eram os que ajudavam e seguiam ajudando.

Não se passavam nem dez minutos em que as pessoas iam embora dali (entristecidas pelo sofrimento daquela pobre família), a vampira profissional da rua Catanduva tomava banho, vestia-se de maneira elegante, penteava-se, perfumava-se e saía rua acima como uma empresária, indo para uma reunião de negócios muito importante. Pouco tempo depois, vendia as caixas de leite e as cestas básicas e transformava a generosidade e inocência das pessoas em cigarro, bebida e outras drogas. De igual maneira, seu marido “batalhador” colocava os botijões de gás nas costas e abastecia o comércio da região, enchendo a “burra de dinheiro” como diziam os antigos.

Dona Sidcreusa – aquela que enxergava “maldade” nos atos humanos mais nobres que já existiram, caiu no pior conto do vigário da história daquele bairro e isso  lhe custou caro: tanto financeira quanto emocionalmente falando.

Além disso, teve um enorme prejuízo com as contas de água e luz que os maldosos e mal-intencionados inquilinos simplesmente não pagavam de jeito nenhum – e que comprometiam seu nome, já que ela era a titular das contas. Ainda ficou sem receber os aluguéis seguintes e teve muitos desgostos com aquele entra e sai de “pessoas estranhas” em seu portão.

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Como se não bastasse que os três adultos da casa fossem usuários contumazes de drogas, eles também traficavam a mercadoria. Quando o relógio marcava 2h da manhã começava o barulho no portão – entra e sai desgovernado – e dona Sidcreusa testemunhava da janela do sobrado a filha adolescente da chefe da quadrilha dando cobertura para o pai e a mãe levarem ou buscarem “mantimentos”.

No dia seguinte era aquela lenga-lenga de novo e de novo com as pessoas de boa índole que lhes prestavam ajuda. Cada pessoa que ia até lá levar algum tipo de doação era ludibriada pelo choro e pelas palavras sentimentais e dolorosas daquela mulher – uma atriz profissional digna de Oscar.

Certa vez dona Sidcreusa a ouviu mentindo sobre ela para alguém no portão e que ali se encontrava interessado em prestar auxílio.

– Ela sabe que meu marido está desempregado, que minha irmã está doente, que eu também não tenho conseguido trabalhos como cabeleireira, que meus filhos estão sem material escolar… e apesar disso, ela fica cobrando o aluguel insistentemente. Diz que não quer saber… que temos que pagar.

Mentira deslavada! E se fosse mesmo verdade, o que ela queria? Que a dona da casa desocupasse sua cama para ela dormir?

– Nossa, que mulher desalmada! – A pessoa comentava de volta, indignada. – Mas não fique com raiva. As coisas vão melhor para vocês.

– Sim, ela não é a pessoa de bom coração que nós achávamos. – Continuava firme e venenosa. – E olha que ela tem renda fixa, as filhas trabalham, elas têm carro, não precisam desse aluguel. Poderiam ser mais compreensivas com o nosso sofrimento.

Não diga!

– As pessoas são muito ruins mesmo. – Ainda completou a mulher que ouvia o desabafo. – Mas Deus tem visto a sua luta e vai lhe dar a vitória! – Incentivou.

Deus havia mesmo de dar vitória à pessoa certa e desmascarar os impostores da história.

Os vizinhos da frente, principalmente, começaram a perceber o sofrimento de dona Sidcreusa e a se solidarizar com ela. Poucos meses depois, os inquilinos bandidos já estavam tão “donos do pedaço” e certos da impunidade reinante em nosso país, que começaram a arrumar briga com a vizinhança inteira, praticamente. Além do barulho que faziam toda madrugada naquele entra e sai de compra e venda de “mercadorias suspeitas”, ainda tinham a capacidade de pedir coisas no comércio, padarias e farmácias da região.

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Na padaria pediam uma caixa de leite para alimentar as crianças; no mercado um quilo de linguiça porque estavam há semanas sem mistura; no ponto de ônibus pediam vela, pois a energia elétrica havia sido cortada; na farmácia alguns comprimidos para dor de cabeça e vômito porque a irmã sofria muito com o tratamento contra o câncer. No semáforo pediam dinheiro (a filha de dona Sidcreusa, inclusive, testemunhou a ação no carro atrás).

Assim, depois de algumas semanas, todo o comércio da região – que primeiramente fora enganado pelo bando – já estava ciente da picaretagem profissional daquela quadrilha organizada. Até a filha adolescente de 14 anos era uma artista na arte do disfarce e da mentira deslavada.

Nesse ínterim, o processo para despejo corria na justiça. Entretanto, uma coisa que ficou muito clara para dona Sidcreusa e para todos que acompanharam o drama vivido por ela e sua família, é que no Brasil a lei privilegia e protege bem mais o bandido do que o mocinho. Que decepção!

A verdade é que o único trabalho que o marido da picareta-mor tinha era de dar golpes e se fazer de coitado para conseguir ganhar coisas para vender. Ele fazia isso até com o material escolar dos filhos pequenos; a chefe da quadrilha só frequentava salões de cabeleireiro para conseguir doações de qualquer coisa que pudesse transformar em dinheiro e a irmã – doente de câncer em fase quase terminal –submetia-se com frequência à verdadeira terapia do pó (cocaína), na companhia de vários outros iguais a ela! Nunca pisou em um hospital nem para reclamar de uma gripe forte. Mas teve até a pachorra de raspar a cabeça para fingir uma doença que (graças a Deus) nunca teve.

Meses depois, aquela família picareta profissional recebeu a ordem de despejo e saiu praticamente fugida do bairro. Ficaram tão desesperados pela ação da justiça e com medo de que pudessem não sair “tão impunes” que deixaram tudo para trás – um estoque de cestas básicas que ainda não tinham vendido. Além disso, a justiça determinou que as contas de água e luz fossem transferidas para o CPF da líder da quadrilha e a fama do grupo correu pelos bairros da região.

É claro que o município era grande o bastante para oferecer inúmeras outras possibilidades de investidas deles, e assim aconteceu. A notícia que se teve e que ainda se tem é que seguiram trapaceando e prejudicando outras pessoas de bem.

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Tags:, , , , , , , , , , , , , , , Last modified: 25 de agosto de 2021

Ellen Costa é o pseudônimo de Jucelene Oliveira, jornalista e escritora. Apaixonada por ouvir e contar histórias. Autora dos livros "Baque: você tem coragem de descobrir a verdade?" e "Crônicas da vida real", ambos disponível em e-book na Amazon. Idealizadora do Arte de Escrever. Instagram @ellencostaescritora