Duas mães conversavam orgulhosas de seus filhos.
A primeira tinha um filho formado em engenharia aos 23 anos, numa universidade pública, com um emprego já gabaritado na área e um salário maior que a expectativa para um jovem ainda em início de carreira.
A segunda reviveu a trajetória de seu filho, muito mais velho agora e com uma história já traçada e bem vivida, a partir da realização da outra mulher, sua grande amiga há anos.
Durante a conversa, a segunda mãe contou para a amiga, rindo às gargalhadas, da vez em que seu filho, quando ainda bem jovem, teve uma grande oportunidade de ascensão profissional, ainda no início da carreira. Não havia sequer ingressado na faculdade. Naquela época não era tão fácil estudar e também não existiam as oportunidades de subsidiar os estudos como aconteceu anos depois.
O garoto cursava o terceiro módulo de um curso técnico em informática e estava em busca de um estágio, condição obrigatória para sua formação. Gostava muito das aulas e conteúdos aprendidos e o mais interessante – desenvolvia muito bem suas habilidades técnicas, conseguindo destacar-se entre os colegas.
A vida resolveu sorrir para ele.
Um colega de classe o indicou para um estágio. Ele ficou imensamente agradecido. Ia poder trabalhar na área que estava estudando, colocar em prática os ensinamentos aprendidos e ainda seria remunerado por isso. Quanta satisfação!
O cachê do estágio era de R$ 350 reais. Para um jovem de 20 anos que nunca havia pego R$ 10 reais na mão, por conta ou suor próprio, significava uma autonomia e tanto. A mãe, grande incentivadora dos sonhos e objetivos dele, ficou radiante e entusiasmada. Fizeram vários cálculos para ele administrar bem o dinheiro: comprar móveis para seu quarto, trocar de computador, ajudar com as despesas da casa e até, talvez, fazer uma faculdade. A alegria da mulher não cabia no peito e no sorriso.
E assim, ele começou sua primeira oportunidade profissional.
Três meses depois, a vida trocou o tímido sorriso por uma gargalhada escandalosa.
Se o primeiro colega foi gentil e prestativo ao lhe indicar para um estágio, o segundo colega então, deveria estar “apaixonado” por ele. Quando surgiu uma vaga efetiva na empresa onde trabalhava, para um programador que “manjasse” muito de sistemas, ele não pensou duas vezes. Escreveu um e-mail perguntando se ele teria interesse em fazer uma entrevista por indicação.
Naquela época ainda não havia WhatsApp ou Mensager para mensagens instantâneas com retornos imediatos. Era preciso escrever um e-mail “a pena” e aguardar a conexão discada do outro para ter retorno. A geração atual sofreria infartos iminentes se vivesse nessa época. rs
Libora, como vamos chamar nosso protagonista, titubeou num primeiro momento, mas resolveu ir à entrevista.
Ele pensou “Só estou há três meses no estágio. O que vou dizer para meu chefe, para conseguir sair mais cedo?”.
Sabe Deus como ele conduziu sua saída mais cedo naquela quinta-feira, mas o fato é que pontualmente às 11 horas estava lá, diante do gerente de um grande banco internacional, ávido por saber se seria capaz de corresponder à expectativa da vaga. O amigo que o indicou não disse nada além de que era para início imediato.
O gerente do banco apareceu depois de 15 minutos de espera e então fez a entrevista clássica. Só o fato do banco estar localizado no Centro de São Paulo e ter uns 80 andares já deixou Libora ansioso, inseguro e atemorizado, apesar da conversa ter transcorrido sem muitos problemas.
Embora ele só tivesse três meses de experiência efetivamente trabalhada, conhecia tecnicamente todas as peculiaridade e mazelas da programação e da análise de sistemas, e por isso, soube responder assertivamente a cada situação que o entrevistador colocou para ele. Naquela ocasião era um “geniozinho” com uma calculadora na cabeça. Ainda tinha cabelos (por incrível que pareça), e eles eram pretos (imaginem só). Também era magrinho e pau para toda obra.
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Ao término da entrevista, o gerente, muito satisfeito com a desenvoltura do candidato, impressionado e estimulado pela possível contratação diante de seus olhos, sentenciou:
– Você se interessa pela vaga?
– Sim, claro. – respondeu meio nervoso.
– E tem condições de começar de imediato?
– Posso verificar, sim, senhor. – uma leve gaguejada.
E pensou: imediato quando? Na próxima semana, no próximo mês?
– Não sei se você percebeu ao certo, continuou o homem, mas nós temos um volume de trabalho muito grande aqui e eu estou sem programador porque o funcionário que ocupava essa vaga foi para uma oportunidade melhor. Nós precisamos que você comece amanhã. Você consegue?
Libora quase engasgou com a própria saliva.
Meu Deus, e agora, como eu vou dizer para meu chefe do estágio que não posso voltar amanhã?
– Ah, outra coisa: ainda não falamos sobre a parte financeira da função. – o homem seguiu firmemente.
Libora estava convicto de que, pelo porte daquele banco e pelo refinamento daquele homem à sua frente, o salário deveria ser o dobro do que ganhava no estágio. Estava radiante com a possibilidade de ganhar um pouco mais e então, poder pagar uma faculdade em breve.
– A vaga que tenho aqui é para início amanhã. – falou olhando nos olhos de Libora. – Se não se importa em dizer: quanto você ganha no estágio que faz?
– R$ 350 reais. – disse orgulhoso e impávido, afinal, saiu do zero para R$ 350. Estava ganhando muito dinheiro. Quase uma fortuna!
– Sei. – suspirou o gerente (sabe Deus o que passou em sua cabeça). – Como disse antes, a vaga é para início imediato, amanhã às 9h, de terno e gravata finos, porque aqui é um banco e como você deve ter notado, todos trabalham de terno. Todos trabalham de social porque recebemos clientes e participamos de reuniões muito importantes.
As bochechas de Libora queimavam.
Meu Deus, quanto custa um terno? Onde compro um terno? O que vou fazer para conseguir um termo para amanhã às 9h?
E o homem continuou.
– Você ganha R$ 350 no seu estágio, certo? – Libora acenou afirmativamente com a cabeça. – O que você acha de ganhar R$ 2 mil reais?
Libora não sabia se havia entendido direito. Talvez devesse ter limpado melhor os ouvidos antes de sair de casa. Ficou olhando para aquela pessoa engravatada e de cabelo com gel diante dele e só conseguiu tossir e falar algo que mais parecia um sussuro…
– Perdão, Libora, não entendi. – o homem inclinou-se para ele.
Libora tentou se recompor para dizer algo, mas estava tão desconsertado que mais parecia Kevin Arnold quando tentava se declarar a Winnie Cooper e se sentia intimidado diante da beleza e popularidade da menina.
– Eu posso pensar e lhe dar retorno? – praticamente balbucionou, não tendo certeza se havia conseguido pronunciar todas as palavras e o o homem seria capaz de entender.
O homem levantou-se do sofá e empertigou-se diante do jovem estagiário, estendendo-lhe a mão, e sendo categórico.
– Tudo bem. Pode pensar. Mas peço retorno em uma hora. Porque caso você não fique com a vaga, preciso conseguir contratar outra pessoa ainda hoje. – sentenciou.
Certamente o homem deve ter pensado: ele talvez tenha outras propostas em vista. É muito talentoso, embora jovem. Talvez eu tenha de aumentar um pouco a oferta. Vou verificar com o RH.
Libora agradeceu resolutamente, pegou sua pasta preta e sua vergonha de forma desengonçadas e saiu em direção ao elevador. Nem conseguia pensar direito para apertar o botão do térreo.
Deus do céu, eu entendi certo o que ele disse? Começar amanhã às 9h. Terno e gravata. Pedir demissão do meu estágio. Não ganhar mais R$ 350 reais. Ele disse mesmo R$ 2 mil ou eu estou ficando louco e surdo?
Quando alcançou a rua, só tinha uma coisa em mente: achar um orelhão. Precisava ligar para sua mãe.
Para aqueles que nasceram na última década, a expressão “cair a ficha”, batida e démodé, pode não fazer sentido algum. Mas ela surgiu da necessidade literal de ter de comprar fichas para colocar no aparelho de telefone público chamado orelhão, hoje bem pouco encontrado nas ruas de São Paulo.
Uma ficha permitia uma conversa rápida – quase um recado – de no máximo dois minutos. Para um casal de namorados apaixonados era um tormento ou um prejuízo financeiro daqueles namorar a distância.
E assim, Libora achou uma banca de jornal e comprou duas fichas. Ele estava tão desorientado que nem ficou para receber o troco. Do outro lado da rua, via o enorme e suntuoso prédio do banco, onde provavelmente começaria a trabalhar no dia seguinte… se…
Discou os números do trabalho da mãe. Quem atendeu foi um colega dela que o conhecia. Trocaram rapidamente duas palavras – com ficha não dava para perder tempo, diferente dos créditos ilimitados para outras operadoras que dispomos hoje – e logo a mãe atendeu.
– O que foi filho? Como foi a entrevista?
– Mãe, estou ligando para saber o que você acha. Se acha que devo aceitar.
E então contou resumidamente a história.
A mulher ficou eufórica do outro lado da linha.
– E por que você pediu uma hora para pensar, filho? – ela questionou. – Com esse salário, era só dizer sim e agradecer.
– Porque queria saber sua opinião, porque tem alguns problemas.
– Meu filho, essa proposta é maravilhosa. Você devia começar hoje mesmo. – ela nem ouviu o que ele disse antes.
– Mas eu não tenho roupa social, mãe. – começou o primeiro drama.
– Mas a gente compra ainda hoje. Isso não é ou será um impedimento. – argumentou.
– Mas e o meu estágio? O que vou dizer para o meu chefe?
– Você vai dizer a verdade: que apareceu outra oportunidade, muito melhor, e que você resolveu aceitar. Se ele cobrir a oferta, você fica. Se não, ele sabe que estágio é passageiro. Fique tranquilo.
– Mas, mãe, estou em São Paulo e você está trabalhando. Como a gente vai comprar as roupas? Eu não tenho dinheiro e nem cartão.
– Meu filho, eu tenho cartão de crédito. Vamos dar um jeito. Vou pedir uma saída aqui do trabalho, para resolver um problema particular, e te encontro no Centro de Osasco.
Por fim, o coração do jovem estudante se acalmou com as sábias palavras da mãe.
Ele até conseguiu acertar o caminho de volta ao prédio, e subir alguns andares de elevador até finalmente reencontrar o homem engravatado. Por fim, apertou a mão do simpático gerente e combinou de começar no dia seguinte. Iria levar os documentos e fazer o exame admissional na parte da manhã, e após o almoço, começar efetivamente o trabalho.
Bendita Antonio Agú!
As compras foram um sucesso! Não baratas, porque terno e roupas sociais decentes nunca são ou serão, mas parceladas em 423 vezes, seria possível arcar com cada parcela.
Libora nunca tinha tido um “dia de príncipe” antes. As irmãs estavam relativamente acostumadas, mas ele era plebeu de sangue e afinidade. Comprou dois ternos super chiques, duas calças sociais, cinco camisas bem cortadas e acentuadas, algumas gravatas, dois coletes para o frio e um sapato que nunca imaginaria usar – nem no seu casamento anos depois.
Depois das compras, por volta de 16 horas, foi à empresa de estágio e conversou com seu chefe, que foi extremamente compreensível e lhe desejou boa sorte. A mãe ficou no ponto de ônibus com um milhão de sacolas esperando por ele.
Quando chegaram em casa, por volta de 19h, com aquele mundaréu de sacolas de uma loja chique, depois de um trânsito lascado e um ônibus pra lá de lotado, ainda tiveram um último desafio no dia: encarar a incredulidade e o ciúmes do pai do jovem.
– Mas por que eles vão te pagar tanto? Eles têm uma fábrica de dinheiro lá?
Fábrica de dinheiro? Eles eram praticamente o Banco Central ou a Casa da Moeda.
– Porque a vaga é no banco, pai.
– Eu não sei, não. Isso tá muito estranho. Você devia ficar no outro emprego, que é mais perto de casa.
– E dispensar uma vaga dos sonhos como essa? – contestou a mãe – De jeito nenhum! Ele conseguiu a vaga e começa amanhã. – disse, já encerrando a conversa.
– E esse monte de sacolas e roupas?
– Lá precisa usar roupas sociais, pai.
– Mas precisa de tantas assim? Bastava uma calça e uma camisa social. Sua mãe é mesmo exagerada. – reclamou
– Você quer que ele use a mesma camisa todos os dias? O lugar lá é chique. Não se pode repetir roupa.
– Eu nunca tive roupa social, por que ele precisa de tantas? – ainda alfinetou antes de desistir da conversa.
Isso é porque você nunca trabalhou em banco ou qualquer outro lugar que necessitasse disso. Não é preciso roupa social para carregar cimento e tijolos.
Depois disso, Libora foi tomar banho e a mãe separou com todo carinho e atenção a roupa que ele usaria no dia seguinte, no seu primeiro dia de trabalho efetivo.
E assim, Libora estava às 9h em ponto para seu primeiro dia de trabalho no banco.
E como a vida pareceu mesmo simpatizar com aquele jovem talentoso em início de carreira, Libora fez sua tão sonhada faculdade: o curso que queria na universidade que tanto desejava, inclusive uma das mais caras da cidade. O público-alvo que a frequentava ostentava carros importados sem nenhuma parcimônia e fazia três viagens por ano para a Europa e Estados Unidos como se estivesse indo para a Praia Grande.
E ainda administrou tão bem seus valorosos R$ 2 mil reais que conseguiu, em alguns meses, remobiliar praticamente toda a casa da mãe.
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