O primeiro dia de aula foi praticamente traumático, sobretudo no segundo período, após o intervalo, quando Judith conheceu sua nova professora de matemática: Beatriz. Uma mulher jovem, com menos de quarenta anos, de cabelo curto e preto, magra e simpática, grandiosamente apaixonada pelos números.
Seria melhor se os odiasse, Judith pensou.
Após apresentar-se e colocar para os alunos as regras e orientações para sua disciplina, ela se propôs a fazer a chamada a fim de conhecer melhor seus novos alunos da sétima série.
Seguiu pela lista de chamada em ordem alfabética e então, alcançou a letra J. Quando chegou ao nome “Judith” e a pobre menina levantou timidamente a mão para dizer “presente”, a professora tirou os olhos do papel e encarou-a bem, com simpatia e curiosidade.
– Nossa, você se parece com alguém que conheço!
– É mesmo? – A menina não queria de forma alguma que a professora descobrisse aquela familiaridade. Seu maior anseio naquele momento era que a docente continuasse a chamada e fosse logo para a letra L.
– Você já foi minha aluna? – Insistiu.
– Não!
– Tem algum irmão ou primo que tenha sido?
– É possível. – Tentou desconversar.
– Qual a idade dele, em que série está? – Arrematou.
Deus amado, faça com que essa professora continue fazendo a chamada e se esqueça de mim, ou faça cair um meteoro na Terra para que ela mude o foco da conversa.
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– Nossa! Até o seu sobrenome é muito familiar para mim. – Ela não se dava por vencida.
Deus do céu! O que essa mulher quer comigo, afinal?
A colega de Judith, Patrícia, inconveniente e intrometida como só ela sabia ser, adentrou na conversa para solucionar o enigma da tarde.
– Ela é irmã do Libora, do oitavo ano. – Disse de maneira certeira.
– É mesmo? – A professora deu aquele sorriso largo de contentamento. – Eu sabia que te conhecia! Seus traços são muito parecidos com os dele! Até parecem gêmeos!
– Todos dizem isso! – Comentou de forma quase inaudível.
– E eu aposto como você também deve ser uma ótima aluna!
– Eu me esforço um pouco…, mas ele é bem mais inteligente!
– Não seja modesta!
– Estou sendo sincera!
– Libora é um ótimo aluno, inteligente e centrado, só tirava notas ótimas comigo. Um dos meus melhores alunos. – Um rasga seda sem fim.
Pronto!
O drama da pobre adolescente com imensa dificuldade com números e raciocínios lógicos estava apenas começando.
– E você gosta de matemática, assim como ele? Tenho certeza que sim!
Por que ela perguntava e ela mesma respondia?
– Eu tenho um pouco de dificuldade. Sou melhor em português e nas outras matérias. – Explicou-se.
– Ah, eu duvido disso! – Ela não se deixava convencer. – Tenho certeza que você é uma ótima aluna em matemática também. Que é tão inteligente quanto seu irmão.
Jesus amado! Essa mulher é surda ou o quê? Por que ela simplesmente não continua a chamada e encontra outro aluno para perturbar pelo resto da tarde?
E assim, a professora fez inúmeros elogios ao irmão CDF de Judith, sempre mencionando o quanto ele era inteligente, organizado, centrado e exemplo para os demais.
E a cada aula de matemática da professora Beatriz, a pobre Judith queria se enfiar num buraco para não ter de encará-la. Algumas vezes a aula nem parecia de matemática, estava mais para grego ou russo, tamanha a dificuldade de entendimento que ela enfrentava para acompanhar o conteúdo.
O mais engraçado disso tudo é que a professora Beatriz era extremamente atenciosa com os alunos e dedicada às dúvidas que eles tinham. Não tinha preguiça para explicar várias vezes a mesma equação se fosse necessário e sempre se colocava à disposição de todos, à exceção de Judith, que ela já havia deduzido previamente – e de forma equivocada – que estava entendendo e acompanhando toda a matéria sem qualquer dificuldade.
Ela sempre perguntava nominalmente aos alunos.
– Entendeu, Carlos?
– Entendeu, Maria?
– Quer que eu explique mais uma vez, João?
Entretanto, para a intelectualmente mediana aluna de exatas, Judith, a professora nunca perguntou se precisava explicar novamente. A grande sorte da menina é que nas aulas os exercícios eram feitos em duplas e a professora corrigia na lousa linha por linha. Então, pelas várias explicações que ela sempre dava, Judith conseguia desenvolver os desafios propostos e quando tinha lição de casa, Libora lhe ajudava.
E sempre que a professora Beatriz tinha oportunidade, ela mencionava o quanto Libora era incrível, genial, esplêndido… loteria!
Certa vez a professora Nilda, de História, foi pedir giz emprestado e ao ver Judith na sala, mencionou que ela era uma de suas melhores alunas. A professora Beatriz ficou toda orgulhosa e completou automaticamente.
– Ela não gosta muito de elogios, mas eu tenho certeza que vai tirar ótimas notas na minha matéria também. Ela é irmã do Libora, sabia disso?
– Sério? – A professora Nilda também o conhecia e ficou feliz em saber disso. – Ele também sempre tirou boas notas em história. E Judith nunca ficou atrás.
Jesus amado! Agora são duas contra mim!
– Viu só Judith? Você fica se fazendo de tímida, mas tenho certeza que vai tirar 10 na prova da semana que vem. – Finalizou Beatriz.
– Eu tenho mais facilidade em história do que em matemática, professora. – Ela ainda tentou se explicar, mas Beatriz simplesmente não deu atenção.
Deus querido! O que fazer?
A prova era na semana seguinte, não seria em dupla, nem com consulta ao caderno. Judith ia bem nas aulas porque a professora explicava com esmero e fazia os exercícios em paralelo com a classe, mas uma prova solitária, com tempo determinado para início e fim, e com uma expectativa alta de resultado por parte da professora Beatriz seria uma tragédia real com final digno de Shakespeare.
O que fazer?
A menina estudou o quanto pôde; fez e refez os exercícios das aulas, tendo ajuda do irmão Libora para sanar algumas dúvidas, mas sabia que na hora da prova, dado o nervosismo e a ansiedade, poderia naufragar feio e ali seria ela por ela mesma. Seria a primeira e provável traumática prova de matemática do bimestre, com uma professora nova que tinha fama de ser exigente, já que era muito responsável e empenhada no ofício de lecionar, com uma expectativa gigante por ter o mesmo sangue de um geniozinho dos números.
Era muito estresse para uma adolescente de 14 anos!
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A prova de duas páginas era exatamente o conteúdo das aulas, mas os enunciados eram diferentes e por isso, a aluna deparou com um dilema terrível diante de si. Não iria alcançar a nota esperada e com certeza, iria decepcionar a professora que a via quase que como uma heroína juvenil.
Quando os resultados saíram, a professora Beatriz comentou exercício por exercício e entregou as provas para conferência dos alunos de mesa em mesa. Judith até ficou impressionada com a nota que recebeu: 6,5.
O olhar tão gentil e carinhoso da professora soou quase como um pedido de desculpas: “Sou obrigada a dar a nota que você mereceu”. Mas na sua delicadeza ainda tentou animá-la:
– Acho que você fez confusão com as fórmulas que passei. Mas vou explicar de novo para tirar qualquer dúvida que você ou outro aluno da sala tenha.
Confusão com as fórmulas? Não, professora! Eu sou péssima em matemática, sou ruim com os números, não sei fazer contas, me embaralho feio com raciocínio lógico… não sou como meu irmão. Sou boa em história, geografia, português, como eu lhe disse… não em matemática!
E na prova seguinte veio outro 6,5.
Mesmo fazendo trabalhos em sala de aula e recebendo pontos positivos por ter o caderno em dia e organizado, Judith ia fechar o bimestre com nota vermelha. Mas ela era irmã de Libora e isso era inaceitável.
A professora Beatriz não conseguia entender porque a menina não ia bem em sua matéria e começou a ficar sem jeito com a aluna.
– Tenho uma novidade para a classe! – Anunciou certa vez toda empolgada.
Os alunos ficaram quietos e com os olhos arregalados na expectativa da novidade.
O que seria?
– Agora vou dar aula de reforço de matemática depois do horário normal, todas as terças e quintas-feiras e quem quiser participar, basta me encontrar na sala 5 e avisar aos pais, claro.
Não houve nenhuma reação folclórica ou festiva dos alunos.
– Para aqueles que estão com notas baixas ou precisando de um ou dois pontos para fechar a média, as aulas de reforço são como aulas de recuperação… e, portanto, são obrigatórias. – Disse, olhando para Judith e mais dois ou três alunos da turma.
O que ela pensou, que Judith ia comemorar?
– Judith, agora você terá mais uma chance para aprender a matéria. Viu só que legal?
– Que ótimo, professora! – Concordou Judith sem nenhum entusiasmo aparente.
Aulas de matemática depois do horário, duas vezes por semana. Era exatamente o que queria!
E assim, na semana seguinte as aulas de matemática se estenderam além do horário e Judith adentrou num novo e desconhecido universo. Descobriu que a professora Beatriz realmente amava ensinar, era apaixonada pelos números e finalmente entendeu – ou aceitou – que a menina tinha mesmo dificuldade na matéria. Não era como seu irmão Libora.
Os alunos ficavam esporadicamente nas aulas de reforço. Houve ocasiões em que estavam na sala apenas a professora Beatriz e a aluna Judith e assim, ambas puderam se conhecer melhor e estabelecer uma conexão mais próxima.
– Eu tenho certeza que depois dessas aulas, você vai ter um desempenho tão bom ou ainda melhor que seu irmão.
Ela acreditava mesmo nisso? De fato, era longânime ao extremo!
E o resultado daquelas terças e quintas foi satisfatório e surpreendente para Judith!
Quando saiu o resultado da prova, ela viu uma certa satisfação no olhar da professora Beatriz. Será que tinha mesmo alcançado um tão aguardado 10?
A nota foi 8,5 – o suficiente para ela recuperar o bimestre e ter sua autoestima elevada. Além disso, carregou consigo uma dívida de gratidão pelo empenho e generosidade da professora.
Para alguns poderia não ser uma grande nota ou um resultado satisfatório (se comparado aos efeitos do irmão), mas era sim, um 8,5 que valia 10!
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