Tudo começou com um homem chamado Jacinto Figueira Júnior.
Ele foi um apresentador e repórter de programa policial chamado “O Homem do Sapato Branco”. Antes da TV, tinha um programa de rádio na Rádio Nacional, que depois virou Rádio Globo, e trazia um quadro com dramatizações radiofônicas dignas do cinema.
Seu programa policial de apelo popular fez tanto sucesso que nos anos 80 foi adotado e se tornou referência para outros programas e “apresentadores”, como Márcia Goldschmidt, Ratinho, José Luiz Datena, entre outros. Só gente interessante, não? ^
Pois bem. Vamos à crônica.
Quando a filha ouvia ‘Oiiii, gente!’, já fechava os olhos de desgosto e em sinal de rendição: ‘Ah, meu Deus. Vai começar a tortura’.
Bastava a moça abrir os olhos, antes das 6h da manhã, para que a mãe logo começasse a descrever o noticiário dramático e trágico do dia… e fazia isso de forma empenhada, com maestria e sem remorso algum…
Como se não bastasse àquela feroz batalha com o despertador – que tocava três vezes até que a garota finalmente conseguisse abrir um dos olhos, levantar-se sonolenta e acender (muito a contragosto) a luz do quarto – ainda deparava-se quase que todos os dias com sua mãe, uma mulher generosa e intolerante com as injustiças do mundo, fazendo-lhe um resumo minucioso e em primeira mão das principais manchetes violentas, sangrentas, revoltantes e políticas do dia. Só coisa interessante!
Pensem numa discípula dedicada de José Luiz Datena! Nome incrível para ser citado, não? Ele não conseguiria arrumar uma aluna tão atenta. A única diferença entre mestre e discípula é que o primeiro só estava empenhado em ganhar dinheiro explorando as mazelas alheias, gritando a plenos pulmões para o “Governador tomar alguma providência”. Produzir show para subir a audiência do programa e continuar com a “burra” cheia de dinheiro era de fato seu maior objetivo; a aprendiz, por outro lado, não ganhava nenhum centavo e parecia sofrer e se lastimar com o sofrimento humano. 🙁
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Toda essa sensibilidade da mulher foi também resultado dos “episódios” que assistiu do programa do Gil Gomes. Lembram-se? Falecido em outubro de 2018, ele foi jornalista e advogado, repórter policial do rádio e da televisão, bastante popular graças a seu estilo personalíssimo de voz, gestos e de também de se vestir. No SBT, fez muitíssimo sucesso com o telejornal “Aqui Agora”.
Voltando à crônica, sim, a mulher até mudava o timbre de voz para trazer em primeira mão o “Aqui Agora” nosso de cada manhã, inspirado em seu ídolo.
O incrível, pensava a filha, é que ela não precisava acordar cedo (já que era aposentada), mas por alguma razão que sabe Deus qual era, insistia em fazê-lo. Antes das 6h da manhã, a mulher já estava a postos só na expectativa de ouvir o despertador da filha tocar para então dar a ela um apanhado de notícias. Quanta generosidade logo cedo!
Assim que a jovem ouvia “Oiiii, gente!”, já fechava os olhos de desgosto! (e olha que ainda nem os havia aberto completamente). A tortura começaria em cinco, quatro, três…
A mãe, influenciada por Eli Corrêa, “o homem sorriso do rádio”, logo se mexia na cama e buscava as palavras certas para impactar a primeira tragédia anunciada. Ela não conseguia reproduzir a informação com as mesmas palavras do locutor, nem com sua ênfase, mas usada outros adjetivos e às vezes misturava as informações. Tudo bem, isso não era problema.
Acreditem, no tempo do “Linha Direta” com o Marcelo Rezende (falecido em setembro de 2017), tinha sido pior ainda…
Esse foi um programa jornalístico da TV Globo que fez grande sucesso durante todos os anos em que ficou no ar. Era exibido às quintas-feiras, mas rendia assunto até a próxima semana. O programa prestava, sim, um serviço de utilidade pública, afinal, depois dele, dezenas de pessoas fizeram denúncias contra criminosos procurados pela Justiça e com isso, muitos foram presos. Mas ouvir a conversa reverberar a semana toda não era para qualquer mortal.
Mas voltando para o Eli Corrêa ou Eli (para os íntimos)… ele começava a chamar as manchetes dos jornais em escaleta e com isso, dava munição para aquela mãe atenta, que já tomava nota de tudo. Quando mudava um pouco a temática das notícias, vinha aquela vinheta para falar dos signos.
“Saiba como será seu dia… aquariano, leonino, sagitariano”… A filha já sabia de cor a descrição que se seguiria. Era mais ou menos assim “Sagitariano, o sol começa a caminhar através de Áries inaugurando um novo ano astral e movimentando seu dia a dia. Hoje é o dia ideal para você encontrar um novo amor ou reencontrar um amor perdido”.
Encontrar um novo amor? Não diga!
A mãe, que nem acreditava nessas coisas, já fazia a primeira advertência: “Maria, sua cor da sorte hoje é o laranja”. E a filha pensava: “Onde mesmo eu vou encontrar um novo amor? Naquele ônibus lotado de gente pobre e ferrada como eu? E ainda usando laranja!”
Socorro, alguém me tire daqui!
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Depois era seguida por uma oração católica, talvez para amenizar um pouco o bombardeio que estava por vir. Mas dois segundos depois da oração, momento de paz e concentração, outra granada era lançada.
A mãe da garota era uma anunciadora profissional de tragédias! Empenhada ao máximo, não se importava com o fato de a filha não interagir com o assunto… seu desinteresse não a desencorajava nem um pouco… na verdade, o efeito era justamente o contrário.
Bastava a moça pegar a toalha e ir em direção ao banheiro, ainda com os olhos fechados e querendo voltar pra cama, que a mãe logo dizia: “Maria, você não vai acreditar! Um garoto foi atropelado na Avenida Paulista e a batida foi tão forte que o braço dele foi arrancado. O desgraçado que fez isso estava bêbado, tinha saído de uma balada, não prestou socorro e ainda jogou o braço do rapaz no rio. Olha que desgraçado”, sua voz ecoava pela casa.
Braço arrancado, bêbado, desgraçado… Para não ser mal educada logo cedo, resmungava “hum hum”.
Na sequência vinha outra de caráter ambiental: “As chuvas no Rio de Janeiro deixaram não sei quantas mil pessoas desabrigadas, sem contar as que morreram soterradas. E os pais que perderam seus filhos, ah coitados! E ainda vem o governador e o prefeito dizerem que as famílias têm que sair dos locais de risco. E vão pra onde essa gente, pra casa deles? Não dão lugar decente pras pessoas morarem e ficam fazendo discurso ridículo na televisão. É um absurdo!…” Sim, era mesmo dona Datena.
Nesse momento, a menina já está no quarto se trocando e pensando “será que ela não percebeu que eu não quero conversar e ainda mais sobre isso?” e novamente resmungava “hum hum… que situação…vou ler mais tarde na internet”.
A mãe emenda a próxima, agora de política para mudar um pouco o tema. “Maria, você sabe de quanto foi o aumento que a Câmara aprovou para os deputados de São Paulo? Um absurdo! E depois ainda querem… ” e por aí o texto seguia, sem pontos e sem vírgulas, mas com muitas e incontáveis exclamações. Arnaldo Jabor era “fichinha” perto dos comentários eloquentes, ácidos e bem fundamentos daquela mulher!
E olha que ainda não existia o Moro pedindo demissão, Bolsonaro negando apresentar atestado médico à justiça, Coronavírus e tantas outras mazelas. ^
Se a filha se queixasse de sono ou de estar muito cansada naquela sexta-feira de manhã, a mãe logo sentenciava. “Você também não se aquieta. Não para em casa, não descansa. Acha é que a mulher maravilha. Parece que tem formiga no corpo”. A menina às vezes discordava, às vezes nada dizia e às vezes ria solitariamente e pensava. “Vou sair logo para não perder o ônibus”.
Mas a opressão da manhã ainda não tinha acabado. Uma das coisas que a filha fazia antes de sair de casa era pedir a Deus para não encontrar nenhum conhecido no ponto de ônibus. E nem conhecidos de seus pais. Ela realmente não gostava de conversar pela manhã… aliás, não gostava nem de ouvir.
Mas parece que o universo não tinha dó mesmo! Bastava subir a rua e dobrar à esquina, que logo avistava um conhecido no ponto de ônibus. “Jesus, o Senhor não ouviu minha oração hoje?”. Pois bem. Ela fazia questão de cumprimentá-lo(a) de longe para estabelecer uma distância segura. Mas não tinha jeito. O inconveniente ou a mal amada logo se aproximava dela e começava o interrogatório.
Trabalha onde?
Como está sua mãe?
Está estudando?
Já casou?
Nossa, mas com que idade você está agora?
Nossa, como esfriou essa semana!
Você viu que os deputados vão ter um reajuste de 25%?
Um absurdo o que aconteceu na Avenida Paulista com o rapaz da bicicleta, você viu?
Jesus amado, me tira daqui!
E com tantas facilidades que o WhatsApp e as redes sociais permitem, as manchetes da mãe não eram apenas presenciais, mas também chegavam por mensagens e vídeos. Uma enxurrada sem precedentes.
E de pensar que depois de um longo e árduo dia de trabalho, ao voltar para casa, ainda tinha o Jornal Nacional e Jornal da Globo para contar tudo que ela já tinha lido e ouvido o dia todo. E a mãe, claro, para comentar cada notícia e transformar aquilo em novidade mais uma vez.
OBS: crônica escrita originalmente em maio de 2018, em homenagem à mãe de Maria. E agora também ao bom jornalismo.